quarta-feira, 31 de agosto de 2016

Afeganistão no 31. O Livreiro de Cabul. Asne Seierstad. «Eu não dominava o 'dari', dialecto persa falado pela família Khan, porém vários membros da família sabiam falar inglês. Parece incomum? Sim, de facto é, mas a minha história de Cabul»

jdact e wikipedia

«Sultan Khan tinha prateleiras abarrotadas de obras literárias em muitos idiomas. Havia colectâneas de poesia, livros sobre lendas afegãs, livros de história e romances. Era um bom vendedor; saí de sua livraria após a minha primeira visita carregando sete livros. Sempre dava uma passadinha quando sobrava tempo, para ver livros e conversar mais com o interessante livreiro, um patriota afegão, muitas vezes decepcionado com o seu país. Primeiro os comunistas queimaram meus livros, depois foram pilhados pelos mujahedin, e em seguida queimados de novo pelos talibãs, ele contou. Um dia, ele me convidou para jantar em sua casa. Encontrei a família toda sentada em volta de uma farta refeição posta no chão: uma de suas mulheres, os filhos, as irmãs, o irmão, a mãe e alguns primos. Sultan contava histórias, os filhos riam e contavam piadas. O tom era descontraído, ao contrário das refeições simples com os comandantes nas montanhas. Mas percebi logo que as mulheres pouco falavam. A bela esposa adolescente de Sultan ficava sentada quieta perto da porta com seu bebé sem dizer uma palavra. A outra de suas esposas não estava presente nesta noite. As outras mulheres respondiam a perguntas, recebiam elogios pela comida, mas não tomavam a palavra para iniciar uma conversa. Ao ir embora, disse a mim mesma: isto é o Afeganistão. Seria interessante escrever um livro sobre esta família. No dia seguinte, voltei à livraria de Sultan e contei-lhe sobre a minha ideia. Muito obrigado, foi só o que disse. Mas isto significa que eu teria que morar com vocês. Seja bem-vinda. Tenho que acompanhar vocês, viver como vocês. Junto com você, suas esposas, irmãs e filhos. Seja bem-vinda, ele repetiu.
Mudei-me para a casa deles num dia enevoado de Fevereiro, levando comigo apenas meu computador, blocos de anotações, canetas, um telefone móvel e a roupa do corpo. O resto sumira na viagem, em algum lugar no Uzbequistão. Fui recebida de braços abertos e logo passei a gostar de usar os vestidos afegãos que elas iam me emprestando. Deram-me um tapete no chão ao lado de Leila, a quem foi dada a tarefa de cuidar do meu bem-estar. Você é meu bebé. Vou cuidar de você, assegurou-me a adolescente de 19 anos na primeira noite, erguendo-se num pulo toda vez que eu me levantava. Tudo o que eu pedia tinha que ser atendido, era a ordem de Sultan à família. Quem não a respeitasse seria castigado, o que só fiquei sabendo mais tarde. O dia todo me serviam comida e chá. Aos poucos fui conhecendo a vida da família. Contavam-me as coisas quando tinham vontade, não quando eu perguntava. Não era necessariamente quando eu estava com o bloco de anotações pronto que eles estavam a fim de falar; podia ser durante uma ida ao bazar, num autocarro, ou talvez tarde, da noite, deitados no tapete. A maioria das respostas vinha espontaneamente, respostas a perguntas que eu nem teria tido a imaginação de fazer. Escrevi este livro em forma literária, com base em histórias reais das quais participei ou que me foram contadas pelas pessoas que as viveram. Quando escrevo o que as pessoas pensam ou sentem, baseio-me no que me contaram ou no que pensavam ou sentiam na situação relatada.
Eu não dominava o dari, dialecto persa falado pela família Khan, porém vários membros da família sabiam falar inglês. Parece incomum? Sim, de facto é, mas a minha história de Cabul é a história de uma família afegã incomum. A família de um livreiro é incomum num país onde três quartos da população não sabem ler nem escrever. Sultan falava um inglês culto que adquirira ao ensinar dari a um diplomata. Sua filha mais nova, Leila, dominava perfeitamente o inglês, pois estudara em escolas paquistanesas quando era refugiada. O filho mais velho, Mansur, também falava um inglês perfeito, tendo estudado por vários anos em escolas no Paquistão. Ele me falava de seus medos, de suas paixões e de suas discussões com Deus. Participei da maioria das histórias relatadas neste livro, como as viagens a Peshawar e a Lahore, a peregrinação, as compras no bazar, os casamentos e seus preparativos, o ham-mam, as visitas à escola, ao Ministério da Educação, à delegacia de polícia e à prisão, e a caçada à al-Qaeda. Não participei de outras, como a tragédia de Jamila e as escapadas de Rahimullah, ou quando Mansur encontrava suas amigas na livraria. São histórias que me foram relatadas, como a do pedido de casamento de Sultan a Sonya. A família inteira estava de acordo que eu morasse com eles para escrever um livro. Se houvesse algo que eles não quisessem que eu escrevesse, eles me avisariam. Mesmo assim, optei por manter a família Khan e as outras pessoas que mencionei anónimas. Ninguém me pediu, mas senti que seria mais correcto». In Asne Seierstad, O Livreiro de Cabul, 2002, colecção Grandes Narrativas, Editorial Presença, 2003, ISBN 978-972-233-118-0.

Cortesia de EPresença/JDACT