quarta-feira, 24 de agosto de 2016

Até que o Amor me Mate. Maria Lopo de Carvalho. «Tenho um génio dominador e confesso-me senhora de uma provocante soberba. Casei-me virgem com Francisco Noronha, segundo conde de Linhares, e o meu dote chegou a 20 mil cruzados de ouro»

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As Mulheres de Camões
Violante de Andrade. 1543
«(…) Acaso não sabes já o quanto abomino essa palavra? Tentar envolve incerteza, contempla a possibilidade de fracasso. Ora eu não contemplo semelhante possibilidade: tragam-me o rapaz aqui a Xabregas!, gritei, já fora de mim. A porta fechou-se sem ruído, deixando apenas o vazio de uma sombra assustada. Respirei fundo, baixando os ombros em desamparo, para logo voltar a endireitar as costas, repuxando um caracol que se desprendera da touca de dormir. Tinha de recuperar a lucidez. Uma senhora que sabe o que quer mostra a sua compostura mesmo quando está sozinha. Olhei-me no reflexo do vidro enquanto soltava o cabelo entrançado. O que ali via era uma mulher que não conhecia e que, porém, era eu mesma. Puxei uma madeixa por cima do ombro direito, constatando que as pontas loiras faleciam já de tinta. Com o pente de marfim desfiz os nós, um por um. A minha pele adquirira uma tonalidade acinzentada, certamente por via das olheiras fundas da noite mal dormida, mas a camisa de linho deixava antever uns seios ainda desejáveis. A natureza sempre fora benevolente comigo. E dali me fui, cabelo escorrido, vela na mão, aos aposentos do meu Antoninho, que dormia no dossel, ao lado de Fernando, os anéis loiros espalhados pelos lençóis.
Não sou dada ao remorso nem penso com o coração, o coração de nada serve senão para nos mantermos vivos. Tenho um génio dominador e confesso-me senhora de uma provocante soberba. Casei-me virgem com Francisco Noronha, segundo conde de Linhares, e o meu dote chegou a 20 mil cruzados de ouro, uma verdadeira fortuna. Quando o Noronha me acometeu, naquela sangrenta noite de São João, que hoje se comemora, tinha eu apenas doze anos e ele já dobrara o equador da idade. Foi aqui mesmo, neste palácio de Xabregas. Lembro-me de me ter sentado na cama, de ter olhado pela janela e de ter ficado atordoada com o movimento do rio: eram centenas de naus, navios, caravelas, batéis e galeões de toda a sorte, que ora aportavam ora levantavam ferro. O palácio estava onde sempre estivera e estará, no centro de tudo, mesmo ao lado do Chafariz de El-Rei e da Porta de Alfama, mas nada disso, naquela primeira noite. me conseguia encantar.
Agora sou já outra mulher, não me canso desta cidade buliçosa e atarefada. Lá diz o povo e com razão: quem não viu Lisboa não viu Portugal. Quando Manuel I mandou construir o novo Paço da Ribeira, de pedra e tijolo, em pleno areal, a cidade escancarou as janelas ao rio. É verdade que as oliveiras e as vinhas que salpicavam de verde as sete colinas e de que meus pais tanto falavam desapareceram, mas o que se perdeu em verde ganhou-se em azul, este tão vasto e perfeito azul que aqui une céu e mar e rio e luz e cidade. A ala sul do paço é a de que mais gosto. Quando cruzo o arco, olho sempre para cima. Pasmo com a prontidão daquele relógio, cortando e repartindo, somando e multiplicando as horas do Reino e as minhas, sobretudo as minhas. A Ribeira é onde tudo se passa. Há uma linha de agitação febril que une o Paço da Ribeira a Xabregas, deixando o Palácio de Santos a ocidente e o Palácio dos Estaus a norte, no Rossio. Gosto do Rossio, gosto daquela praça grande de casas alinhadas e muitos pombos esvoaçando, vigiada por conventos e castelos. Diz o senhor meu marido que é nesta zona ribeirinha que fica o centro do Império: a Casa da Índia, a Casa da Mina, o mercado, a Casa da Flandres e, mais além, a casa da Moeda, o arsenal militar, a Alfândega, os estaleiros navais e a casa dos Bicos, que é linda de se ver, com as pedras talhadas em pontas de diamante a cintilarem ao nascer do sol. É por aqui que tudo se vende: marfins e sedas bordadas, pólvora, flores exóticas, especiarias de toda a ordem, tâmaras, laranjas, porcelanas chinesas, linhos da Bretanha. tecidos de damasco em baús de cânfora e..., guloseimas. Ensandeço ao ver as cores e ao imaginar os sabores daqueles deleitosos quadrados fabricados com o açúcar do Brasil e amontoados nas lojas da Rua da Confeitaria, uma fina perpendicular à Rua Nova. Mas nem só de doces vivem os meus sentidos». In Maria João Lopo de Carvalho, Oficina do Livro, LeYa, 2016, ISBN -978-989-741-488-6.

Cortesia de Oficina do Livro/JDACT