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As
Mulheres de Camões
Violante
de Andrade. 1543
«(…)
Acaso não sabes já o quanto abomino essa palavra? Tentar envolve incerteza,
contempla a possibilidade de fracasso. Ora eu não contemplo semelhante
possibilidade: tragam-me o rapaz aqui a Xabregas!, gritei, já fora de mim. A
porta fechou-se sem ruído, deixando apenas o vazio de uma sombra assustada.
Respirei fundo, baixando os ombros em desamparo, para logo voltar a endireitar
as costas, repuxando um caracol que se desprendera da touca de dormir. Tinha de
recuperar a lucidez. Uma senhora que sabe o que quer mostra a sua compostura mesmo
quando está sozinha. Olhei-me no reflexo do vidro enquanto soltava o cabelo
entrançado. O que ali via era uma mulher que não conhecia e que, porém, era eu
mesma. Puxei uma madeixa por cima do ombro direito, constatando que as pontas
loiras faleciam já de tinta. Com o pente de marfim desfiz os nós, um por um. A
minha pele adquirira uma tonalidade acinzentada, certamente por via das olheiras
fundas da noite mal dormida, mas a camisa de linho deixava antever uns seios
ainda desejáveis. A natureza sempre fora benevolente comigo. E dali me fui,
cabelo escorrido, vela na mão, aos aposentos do meu Antoninho, que dormia no dossel,
ao lado de Fernando, os anéis loiros espalhados pelos lençóis.
Não
sou dada ao remorso nem penso com o coração, o coração de nada serve senão para
nos mantermos vivos. Tenho um génio dominador e confesso-me senhora de uma
provocante soberba. Casei-me virgem com Francisco Noronha, segundo conde de
Linhares, e o meu dote chegou a 20 mil cruzados de ouro, uma verdadeira
fortuna. Quando o Noronha me acometeu, naquela sangrenta noite de São João, que
hoje se comemora, tinha eu apenas doze anos e ele já dobrara o equador da
idade. Foi aqui mesmo, neste palácio de Xabregas. Lembro-me de me ter sentado
na cama, de ter olhado pela janela e de ter ficado atordoada com o movimento do
rio: eram centenas de naus, navios, caravelas, batéis e galeões de toda a
sorte, que ora aportavam ora levantavam ferro. O palácio estava onde sempre
estivera e estará, no centro de tudo, mesmo ao lado do Chafariz de El-Rei e da
Porta de Alfama, mas nada disso, naquela primeira noite. me conseguia encantar.
Agora
sou já outra mulher, não me canso desta cidade buliçosa e atarefada. Lá diz o
povo e com razão: quem não viu Lisboa não viu Portugal. Quando Manuel I mandou
construir o novo Paço da Ribeira, de pedra e tijolo, em pleno areal, a cidade
escancarou as janelas ao rio. É verdade que as oliveiras e as vinhas que
salpicavam de verde as sete colinas e de que meus pais tanto falavam
desapareceram, mas o que se perdeu em verde ganhou-se em azul, este tão vasto e
perfeito azul que aqui une céu e mar e rio e luz e cidade. A ala sul do paço é
a de que mais gosto. Quando cruzo o arco, olho sempre para cima. Pasmo com a prontidão
daquele relógio, cortando e repartindo, somando e multiplicando as horas do
Reino e as minhas, sobretudo as minhas. A Ribeira é onde tudo se passa. Há uma
linha de agitação febril que une o Paço da Ribeira a Xabregas, deixando o
Palácio de Santos a ocidente e o Palácio dos Estaus a norte, no Rossio. Gosto do
Rossio, gosto daquela praça grande de casas alinhadas e muitos pombos
esvoaçando, vigiada por conventos e castelos. Diz o senhor meu marido que é
nesta zona ribeirinha que fica o centro do Império: a Casa da Índia, a Casa da
Mina, o mercado, a Casa da Flandres e, mais além, a casa da Moeda, o arsenal militar,
a Alfândega, os estaleiros navais e a casa dos Bicos, que é linda de se ver, com
as pedras talhadas em pontas de diamante a cintilarem ao nascer do sol. É por
aqui que tudo se vende: marfins e sedas bordadas, pólvora, flores exóticas,
especiarias de toda a ordem, tâmaras, laranjas, porcelanas chinesas, linhos da
Bretanha. tecidos de damasco em baús de cânfora e..., guloseimas. Ensandeço ao
ver as cores e ao imaginar os sabores daqueles deleitosos quadrados fabricados
com o açúcar do Brasil e amontoados nas lojas da Rua da Confeitaria, uma fina perpendicular
à Rua Nova. Mas nem só de doces vivem os meus sentidos». In Maria João Lopo de Carvalho,
Oficina do Livro, LeYa, 2016, ISBN -978-989-741-488-6.
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Livro/JDACT