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e wikipedia
«No
sul de Roma no Golfo de Putéolos fica situada a esplêndida villa de Marco Licínio Crasso, o mais rico cidadão romano. Quando o
supervisor da propriedade é assassinado, Crasso conclui que a sua morte foi
arquitectada por dois escravos, pertencentes ao Movimento de Libertação de
Esparta. Crasso, furioso, estabelece o prazo de cinco dias para se entregarem
ou punirá os restantes noventa e nove escravos. Gordiano, o Descobridor, é
chamado para averiguar onde poderão estar os escravos fugitivos. Confrontado com
uma casa repleta de segredos e mistérios, a verdade só emerge lentamente..., e
à medida que a hora do massacre se aproxima, Gordiano apercebe-se que o
labiríntico caminho em que se meteu só o poderá conduzir à sua própria
destruição. Apesar das suas excelentes qualidades da sua honestidade e da sua
devoção, da sua esperteza, da sua inquietante agilidade, Eco não estava
preparado para atender à porta. Eco era mudo. Mas não era nem nunca fora surdo.
Na realidade, eu não conhecia ninguém com uma tão nítida capacidade auditiva.
Também tinha o sono leve, um hábito que adquirira nos terríveis dias de vigília
da sua infância, antes de a mãe o ter abandonado e de eu o ter encontrado na
rua e o ter finalmente adoptado. Não é de espantar que tivesse sido Eco a ouvir
bater à porta na segunda hora depois do cair da noite, quando já todos nos
tínhamos ido deitar. Foi Eco quem recebeu o meu visitante nocturno, mas não
pôde mandá-lo embora, por não ser capaz de o enxotar como um agricultor enxota
um ganso errante da porta de casa. Assim sendo, que outra coisa poderia Eco ter
feito? Poderia ter acordado Belbo, o meu homem de mão. Arrastando o seu fedor a
alho, e esfregando estupidamente os olhos por causa do sono, Belbo poderia ter
intimidado o meu visitante, mas duvido de que se tivesse visto livre dele; o
estrangeiro era persistente, e duas vezes mais inteligente do que Belbo era
forte. Assim, Eco fez o que tinha de fazer; indicou ao meu visitante para que
esperasse na entrada e foi bater suavemente à porta do meu quarto. Não tendo
conseguido acordar-me com essas pancadinhas suaves doses generosas da sopa de
peixe e cevada de Betesda, regadas com vinho branco, tinham-me feito adormecer
rapidamente, Eco abriu cautelosamente a porta, entrou no quarto pé ante pé, e
abanou-me o ombro. Ao meu lado, Betesda agitou-se e suspirou. Uma massa de
cabelo preto viera cobrir-me o rosto e o pescoço. Os fios mais pequenos
faziam-me cócegas no nariz e nos lábios. O odor da sua hena perfumada fez-me
sentir um frêmito erótico abaixo da cintura. Voltei-me para ela, formando um
beijo com os lábios, e correndo-lhe as mãos pelo corpo. Como era possível,
perguntei a mim próprio, que ela conseguisse passar por cima de mim e vir
tocar-me com a mão no ombro? Eco nunca gostara de fazer o género de ruídos semi-animalescos
que emitem aqueles que não conseguem falar, pois achava que isso era um
comportamento degradante e embaraçoso. Preferia manter um austero silêncio,
como a Esfinge, e deixar que as suas mãos falassem por si. Agarrou-me no ombro
com mais força e abanou-o com um pouco mais de firmeza. Nessa altura, eu
reconheci o seu toque, com a certeza com que se reconhece uma voz que nos é
familiar. Até consegui compreender o que ele estava a dizer. Alguém bateu à
porta? murmurei, limpando a garganta e mantendo os olhos fechados durante mais
um momento. Eco deu-me uma ligeira pancada de assentimento no ombro, que era a
sua maneira de dizer sim na escuridão. Eu aninhei-me de encontro a
Betesda, que tinha voltado as costas à perturbação. Toquei-lhe no ombro com os
lábios. Ela expirou, fazendo um ruído algures entre um arrulho e um suspiro. Em
todas as minhas viagens, desde os Pilares de Hércules até à fronteira com os
Partos, nunca encontrara uma mulher que reagisse como ela. Como uma lira
requintadamente construída, pensei, perfeitamente afinada e polida, que se vai
aperfeiçoando com o passar dos anos; que homem de sorte és tu, Gordiano, o
Descobridor, que descoberta fizeste naquele mercado de escravos de Alexandria,
há já quinze anos. Algures por baixo dos lençóis, o gatinho ronronava. Egípcia
até às entranhas, Betesda sempre tivera gatos, e até os convidava para a nossa
cama. Este atravessava o vale que se formara entre os nossos dois corpos,
passando de uma coxa para outra. Até agora, mantivera as unhas encolhidas;
ainda bem porque, nos últimos instantes, a mais vulnerável das minhas partes
tornara-se conspicuamente mais vulnerável, e o gatinho parecia estar a
dirigir-se exactamente para aí, talvez pensando que se tratava de uma serpente
com que poderia brincar. Enrosquei-me contra Betesda, para me proteger. Ela
suspirou. Eu lembrei-me de uma noite de chuva, há pelo menos dez anos, antes de
Eco vir viver connosco o gato era diferente, a cama era outra, mas a casa era a
mesma, era esta casa que o meu pai me deixou, e nós os dois, Betesda e eu,
éramos mais jovens, mas não muito diferentes do que somos hoje. Passei pelo
sono, e quase sonhei. Voltei a sentir as pancadas decididas no ombro. Duas
pancadas eram a maneira de Eco dizer não, como se estivesse a abanar a
cabeça. Não, não queria ou não podia mandar embora o meu visitante. Voltou a
dar-me duas pancadas decididas no ombro. Está bem, está bem!, murmurei. Betesda
voltou-se agressivamente, afastando-se de mim, puxando o lençol e expondo-me ao
ar desagradavelmente frio de Setembro. O gatinho caiu na minha direcção, pondo
as unhas de fora para se reequilibrar. Bolas de Numa!, lancei eu, embora não
tenha sido o fabuloso rei Numa a ser magoado por uma unha pequenina. Eco
ignorou discretamente o meu gemido de dor. Betesda riu-se sonolentamente na
escuridão. Eu saí da cama e mexi-me desajeitadamente à procura da túnica. Eco
já a tinha na mão, preparada para eu me meter dentro dela. Espero que seja
alguma coisa importante! disse eu. Era importante, e nem eu tive maneira de
perceber, nessa noite e durante algum tempo, quão importante era. Se o
emissário que esperava no vestíbulo de minha casa tivesse sido claro, se
tivesse tido a franqueza de dizer por que tinha vindo e quem o enviara, eu
ter-me-ia vergado aos seus desejos sem a menor hesitação. Casos e clientes como
aquele que me caiu no colo naquela noite são poucos e esparsos; eu teria lutado
pela possibilidade de conseguir aquele trabalho. Em vez disso, o homem, que se
apresentou concisamente como Marco Múmio, afectou um ar de portentoso
secretismo e tratou-me com uma desconfiança que se aproximava do desprezo». In Steven
Saylor, O Abraço de Némesis, Um Mistério na Roma Antiga, 1992, Quetzal Editores,
Lisboa, 2003, ISBN 978-972-564-434-4.
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