«(…) Frei Tomás. Agostinho pela ordem, cidadão do Mundo pela vontade própria,
crente num deus maior que via muito arredado deste mundo, frei Tomás era um
viajante convicto de que é nas viagens que se conhecem os homens e seus modos
de agir, de pensar e de sentir, e que em cada ida há o retorno da cultura que
carece. Tinha andado léguas e léguas, atravessado a maior parte da cristandade,
convivido com cristãos, mouros, judeus, para seu espanto encontrara em todos
palavras de acerto, almas boas, gente bem criada, adorando ora a um, ora a
outro deus, ou talvez ao mesmo em diferentes palavras e modos e nomeações,
gente diferente e contudo tão parecida, pois que se só há uma raça que pensa e
age e essa é a do homem, e até Deus se revelou em Homem, de formas diferentes,
a todos eles...
A verdade, a seu ver, é que a maldade e a discórdia não estará no modo
como se adora ou crê, mas em cada homem e naqueles que os governam, e certo é
que os que lutam e que matam o fazem, mesmo em nome de Deus, por vontade do
homem que os dirija. E, pensava frei Tomás, não há crueldade maior do que a dos
homens, principalmente naqueles que, com falas escatológicas, matam e mandam
matar em nome de um Deus que nunca se lhes revelou a pedir tais sanções... Ia mal o Mundo, pensava frei
Tomás. Andara pelo reino dos Reis Católicos e vira sangue a correr, e inocentes
perdidos, e almas torturadas, mortes na fogueira e no garrote, e uma impiedade
que alastrava e fazia desacreditar.
A Igreja está fraca. E sempre que está fraca requer o uso da força... Voltava
agora cheio de receios ao seu reino de origem. Também por aqui as coisas
pioravam, a raiva andava menos surda e mais cruel, manifestações de toda a ordem
proclamavam-se nos actos... - Deus, se é que existes, não fiques a observar e mostra-Te.
Era o rogo, ainda que incrédulo, deste frei Tomás.
Nuno Coelho, aliás Zacuto
de origem, agora cristão-novo, estava na câmara de El-Rei. Por mil voltas aziagas,
quisera El-Rei evitar chamá-1o. Primeiro, que ele era judeu, e sê-lo-ia sempre
mesmo depois de aspergido à força com a graça santa da água do baptismo; depois,
porque chamando-o mostrava El-Rei a sua fraqueza e as fraquezas de outros servidores
que tentando curá-lo falaram e que de nada lhe serviam. Depois, porque El-Rei
sempre que via Nuno Coelho, aliás Zacuto
de origem, lembrava-se do corpo cheio da
bela Raquel, a moça, infelizmente judia, que El-Rei achava de mais belo peito
cheio e de ancas mais airosas, e de carne mais comestível em todo o reino, com,
Irra, blasfémia! A cara mais
santa e linda de toda a cristandade. Uma Madalena, Irra, blasfémia! De longos cabelos azeviche e olhos a
condizer, boca carnuda, rolicinhas formas... - Estais a atentar, rei? - perguntou Zacuto notando o
alheamento do monarca. - O quê, sim?
- assarapantou-se El-Rei. – Pois o que
dizeis?
Zacuto dizia com grande mordacidade escondida, que os achaques
de El-Rei mereciam um cataplasma a condizer, assim uma massa rubefaciente a
aplicar-se em directo sobre a pele, mas neste caso emplastro muito próprio com
uma coisa que ele próprio providenciara, cuidara e misturara, e que ensacara a
rigor em muito fechado saco de ervas aromáticas, aromáticas para sua defesa,
pois o conteúdo, e disso pedia desculpa, tinha um cheiro de não se suportar,
mas que, depois de aplicado, iria aos poucos melhorando com o tempo... E desde
que fizesse algum efeito, despenalizando as pernas tristemente rotas de El-Rei,
então por bem empregue se diria o cataplasma e até o cheiro náusea que
gerava...»
In Alexandre Honrado, Os Venturosos, Círculo de Leitores, Braga, 2000,
ISBN 972-42-2392-2.
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