quinta-feira, 4 de julho de 2013

Vida Ignorada de Leonor Teles. António Cândido Franco. «Recordou Inês, a pureza do seu retrato, a finura do traço, a pele mais fina que a seda, o requinte dos seios e a voluptuosidade das espáduas. Suspirou. Apetecia-lhe urrar de dor…»


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«(…) O rei decidira agraciar o seu favorito com o título de conde de Barcelos, o único que entre nós então existia. O título pertencera a um dos bastardos de maior nomeada de Dinis, Pedro Afonso, autor de histórias contadas e cantigas em verso, que falecera poucos meses antes da execução de Inês sem deixar descendência de três casamentos. Fora porém dado pela primeira vez, ainda no século XIII, a um Teles de Meneses. Com essa dignidade, Telo tornava-se, a seguir ao rei português, no homem de maior autoridade governativa e de maior crédito económico no reino. Caprichou o rei na festa. Mandou lavrar seiscentas arrobas de cera de que os mesteirais da Porta do Ferro de Lisboa fizeram cinco mil círios. Encomendou cem arratéis de seda, de que as tecedeiras e as brosladoras de São Crispim, de mistura com cinquenta novelos de fio prata e outros tantos de oiro, apuraram um milhar de colgaduras, que foram espalhadas pelas igrejas da cidade, pelo paço da alcáçova e ainda pelas ruas e vielas por onde o rei e o conde haviam de passar. Arrebanhou depois o rei no termo da cidade uma multidão de mazorros, servos e colonos, para pegarem nas altas tochas. Foi o novo conde velar armas ao mosteiro de São Domingos, no Rossio da cidade, já fora da cerca velha, não longe das hortas de Valverde e da Carreira dos Cavalos. Corria o estio e o tempo generoso e pródigo poucas exigências fazia. Os mazorrais haviam trocado o tabardo grosso de burel pelo saio leve de fustão, cingido pelo cinto de esparto. Muitos apresentavam-se descalços, pés encardidos e duros como sola bem curtida; outros juntavam ao chapeirão ensebado de coiro ou ao carapuço de pano esburacado uns pantufos no fio. Os cavaleiros vestiam a cota de pano com as armas bordadas, a que chamavam brial, sobre a malha de ferro da loriga e traçavam à cintura o cinto da pesada espada; outros, sem arnês ou armadura, envergavam o gibão de veludo lionês com o mantão traçado por cima, onde em prata se bordavam as armas.
Quando os primeiros cavaleiros e as primeiras donas deixaram a igreja do mosteiro, passara já o derradeiro ofício do dia. Para efeitos de lavrar campo ou ofício o dia terminara, posto que a sazão quente trouxesse ainda, antes da noite e das trevas, uma larga folga de luz. Cinco mil mazorrais pegaram então nas altas tochas acesas e postaram-se no caminho que ia desde a baixa da cidade, por onde corria o arroio da Corredoura, até aos cimos da alcáçova, onde estava o paço real, que havia sido reformado no tempo do avô do rei hodierno. O caso passou por digno de admiração numa cidade fechada e sonolenta, onde só o corso de Fevereiro dava lugar a reacções de ira ou de medo. Formou-se o séquito nas traseiras do mosteiro, pronto a percorrer lentamente a fieira de círios iluminados que ascendiam até ao paço. À medida que a luz do dia se ia apagando, mais se acendiam em mistério e encanto na Terra aquelas flores vermelhas e luminosas. Ao brilho do seu clarão, luziam de pasmo e inocência aqueles rostos sujos e broncos, servindo o seu soberano, que além de senhor era viúvo.
O rei foi então tomado pelos impossíveis que lhe mordiam às escusas a alma. Recordou Inês, a pureza do seu retrato, a finura do traço, a pele mais fina que a seda, o requinte dos seios e a voluptuosidade das espáduas. Suspirou. Apetecia-lhe urrar de dor àquele céu inclemente que fora incapaz dum gesto para evitar tão grande injustiça. Ali estava só, sem remédio, sem rainha, condenado para sempre à amargura daquela solidão. A nostalgia, mordendo-lhe a alma sem ser esperada, metia-lhe mais pavor do que os touros negros na Atouguia ou o mar da costa em época de chuva e vento. Lembrou-se então dum ardil para apagar a pista ao lobo faminto da saudade que lhe cravava o dente ali tão de rijo na alma. Meter-se a bailar aquela noite toda, até ao dealbar da luz do dia na abertura da hora de prima, quando os sinos repicassem pela primeira vez na cidade.
 - Se.. senhores, folgai e bai..lai, que é isso que o.. ora apraz ao vo.. vosso rei! E ele próprio, para surpresa de todos, deixou a forma, bateu palmas e entrou de dançar com suas longas barbas agrisalhadas pela dor por entre aqueles servos bisonhos, de círio aceso na mão. Pouco a pouco, depois da estupefacção inicial, pajens, infanções e ricos-homens perderam a vergonha que os retinha e, dando o rei por tão folgão, entraram eles também de bailar e bater palmas».

In António Cândido Franco, Vida Ignorada de Leonor Teles, Edições Ésquilo, Lisboa, 2009, ISBN 978-989-8092-59-5.

Cortesia de Ésquilo/JDACT