«Um
dia (...) a rapariga existirá, a mulher existirá. E estas palavras: rapariga, mulher, não significarão somente o contrário de homem mas qualquer coisa de
pessoal, valendo por si mesmo; não apenas um complemento, mas uma forma
completa da vida: a mulher na sua verdadeira humanidade». In Cartas a um Poeta
O cofre secreto
«Já a noite fechou. Mais curtos
os dias no Outubro avançado. Toda a gente se retirou, até esses dois que se
haviam deixado ficar para abrirem a caixa de que só o rei possuía a chave. Mas,
senhores, esboçara eu opor-me, não será sacrilégio, com o corpo dele aqui ainda
quente? O prelado mandara os acólitos saírem e esperarem lá fora. Tirara devagar
a estola, limpava ao lenço a testa suada e foi sem bulha à porta, aguçou o
ouvido, espreitou a um lado e outro e encostou-se ao batente como para estarmos
mais à puridade: não me metesse no assunto, resmungou de má cara. Um bispo e um
prior, tão de seu íntimo serviço e confiança! Procuraram justificar a empresa: queriam
ver, estava eu a compreender?, se era aí que sua alteza guardava a...,
suspenderam-se ao abrir da boeta. Olharam para dentro, trocaram um olhar de espanto
e tornaram a fechá-la. Foram-se embora sem dizer palavra. Pela janela vejo-os
afastarem-se dissolvidos nas vibrações do dobre a finados, tintos do luar que
tudo alaga mesmo o marulhar das ondas a espumejarem na linha da praia..., uma
após outra, uma após outra, badalar de sino, eternas..., não há punhal de
sicário nem acha de verdugo nem veneno de físico que as faça parar..., desvio
os olhos por este pequeno quarto, a tumba com o cadáver, o altar improvisado,
as velas a arderem, o corpo modelado sob a mortalha. Adivinham-se-lhe os
lábios, o nariz, a testa, a depressão das órbitas..., meu senhor! Um tal
rei!... Terminou a tua luta. Posso agora tratar-te por tu. Não, não é desacato.
Também não receio que me ralhes ou castigues. Já não és rei. No discurso do meu
pensamento já não haverá de ora em diante dons nem vós. Acabaram-se os foros de
fidalguia, nivelados todos pelo tratamento de simples mortais..., eu sei. A visão
dos humildes não é igual à do soberano. Lá em cima, lá muito em cima, como
águia, plana ele abarcando horizontes ao mesmo tempo que miudezas do chão...,
pediste-me um dia que te debuxasse a figura. Gostaria de a ter executado numa tábuha picta, como é timbre dos mestres
pintores, a ouro-pigmento, realgar, cinábrio egípcio e azurite. A tanto não
chega a minha habilidade. Pincel não é comigo, apenas o lápis e uma simples
aguada de ocre-ferrugem, como vi fazer a um iluminista do scriptorium de São Domingos. Mas a composição..., lembra-me a
nossa conversa: que dizes, senhor,
sugeria Antão Faria que aí estava connosco a
debuxarem-te no trono, a cadeira real encimada por dossel de brocado, a coroa
na cabeça e o ceptro na mão, a opa roçagante de tela de ouro, forrada de marta,
a desdobrar-se-te aos pés sobre o estrado atapetado de veludo carmesim, e, em
baixo, os vassalos de joelhos prestando-te menagem?
Em redor, senhores e
oficiais-mores aplaudiam ou contrariavam com murmurinhos trocados e meneios do
rosto. Não era essa a minha ideia, contrapunha eu. Então qual? Coisa mais
simples e, do mesmo lance, mais representativa..., já te não acode memória para
te recordares: pó e nada...., seria
assim: o teu vulto a dominar e o indicador direito a apontar a máquina do mundo,
no centro a região elemental: a terra, a água, o ar e o fogo; a seguir, por sua
precedência, os sete céus: a lua, mercúrio, vénus, o sol e ..., Marte, Júpiter
e Saturno..., ajudava faria a minha hesitação. ... Depois, o
firmamento, o cristalino, o primeiro móbil; por fim, nas alturas, o empíreo,
morada dos bem-aventurados..., não era assim universal a visão de tua alteza?
Sorriste de leve, afagando a barba: prouvera
fosse, Resende. Senhor do universo só Deus. Mas estás prestes a ser senhor
do mundo... A assembleia aprovava num sussurro. Não exageres. Debuxar-me-ás sentado no trono..., ordenavas. ... E
colocarei à tua direita o escudo real e a esquerda a esfera..., insistia eu. ... A esfera, sim, dos matemáticos, a esfera
astronómica, essa que em miniatura conservo sobre a mesa de trabalho... Eu
sei. Vi-a ser fabricada na oficina daquele judeu que veio de Olivença e tem sua
forja ali à rua da Ferraria, chama-se Belami e que manha de mãos! Entrava-se na
loja e encontrava-se a gente de súbito na gruta de um cíclope: dava ao fole um
moço quase nu, tanga enegrecida a cobrir-lhe as vergonhas, a chama do braseiro
a sanguinhar-lhe o suor no corpo de efebo. Em brasa com a tenaz retirava Vulcano
a haste de ferro que batia sobre a bigorna, arredondava, adelgaçava, o eixo
tomava forma e mergulhava-o então a temperar na água fria, que rechinava em
nuvens de vapor. De uma calote esférica...
O trabalho
que tiveram em medi-la com todo o rigor o meu astrónomo Martim Boémia, o doutor
Moisés e mestre Abraão Zacuto! E
o zelo em assistirem ao corte e ao aparelhar das armilas, ao melindroso montar
da esfera, ao limar de alguma cabeça de cravo mais pontuda. E de repente aí
estavam o meridiano, a linha equinocial, os círculos paralelos, o zodíaco, os
pólos..., e a terra no centro..., estamos encurralados numa concha, meu senhor.
Até o pensamento nos é redondo, mas, quando olhamos a esfera é como se nos
soltássemos. Vê, somos deuses a espreitar do cimo de uma nuvem a máquina do
mundo! Não blasfemes. Não, não. Apenas mitos da fábula. Seja como for,
farás o que te digo. Debuxar-me-ás no
trono..., e colocarei à direita as armas reais, com os escudetes aprumados como
ordenaste, e à esquerda a esfera..., teimava eu. ... E a meus pés..., rematavas
com ar de desfrute... quem, meu senhor? ... A meus pés ajoelharás Antão Faria a
prestar-me menagem. Antão Faria, sorridente, pôs o joelho no chão a beijar-te a
mão que lhe estendias... Visão real, que tudo domina. Nós, cá de baixo, logo
nos encobre qualquer muro de quinta, as árvores do pomar vizinho, o outeiro
próximo, logo nos tolhe a meta imediata..., coube-me, no entanto, o privilégio
de servir-te na qualidade de teu moço de câmara e de escrivaninha,
acompanhar-te dia e noite para onde quer que fosses. Junto do teu ombro, de pé,
nos meus dedos pena e aparos sempre prontos, à espera do aceno apenas esboçado,
o meu silêncio atento habituado a prescrutar-te pensamentos e desejos..., um
trato constante com os senhores que te serviam, a permissão de manuseio das
obras da tua livraria, o conhecer esses sábios que diante de ti desdobravam pergaminhos
e longas horas contigo permaneciam a explicá-los, seguindo com o ponteiro o contorno
das terras e dos mares, o praticar com os grandes navegadores que entravam por
teus Paços dentro sem serem anunciados, a trazerem-te sem delongas as novidades
por lavar, quero as notícias de pronto,
mal lanceis âncora no porto..., ordenaras..., sejam que horas da noite ou do dia forem... notícias sem água nem sabão...»
In
Fernando de Campos, A Esmeralda Partida, Prémio de Prosa de Ficção Eça de
Queirós de Literatura de 1995, Difel, 1994/2008, ISBN 978-972-290-330-1.
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