domingo, 28 de junho de 2015

A Esmeralda Partida Fernando Campos. «Não, não é desacato. Também não receio que me ralhes ou castigues. Já não és rei. No discurso do meu pensamento já não haverá de ora em diante dons nem vós. Acabaram-se os foros de fidalguia…»

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«Um dia (...) a rapariga existirá, a mulher existirá. E estas palavras: rapariga, mulher, não significarão somente o contrário de homem mas qualquer coisa de pessoal, valendo por si mesmo; não apenas um complemento, mas uma forma completa da vida: a mulher na sua verdadeira humanidade». In Cartas a um Poeta

O cofre secreto
«Já a noite fechou. Mais curtos os dias no Outubro avançado. Toda a gente se retirou, até esses dois que se haviam deixado ficar para abrirem a caixa de que só o rei possuía a chave. Mas, senhores, esboçara eu opor-me, não será sacrilégio, com o corpo dele aqui ainda quente? O prelado mandara os acólitos saírem e esperarem lá fora. Tirara devagar a estola, limpava ao lenço a testa suada e foi sem bulha à porta, aguçou o ouvido, espreitou a um lado e outro e encostou-se ao batente como para estarmos mais à puridade: não me metesse no assunto, resmungou de má cara. Um bispo e um prior, tão de seu íntimo serviço e confiança! Procuraram justificar a empresa: queriam ver, estava eu a compreender?, se era aí que sua alteza guardava a..., suspenderam-se ao abrir da boeta. Olharam para dentro, trocaram um olhar de espanto e tornaram a fechá-la. Foram-se embora sem dizer palavra. Pela janela vejo-os afastarem-se dissolvidos nas vibrações do dobre a finados, tintos do luar que tudo alaga mesmo o marulhar das ondas a espumejarem na linha da praia..., uma após outra, uma após outra, badalar de sino, eternas..., não há punhal de sicário nem acha de verdugo nem veneno de físico que as faça parar..., desvio os olhos por este pequeno quarto, a tumba com o cadáver, o altar improvisado, as velas a arderem, o corpo modelado sob a mortalha. Adivinham-se-lhe os lábios, o nariz, a testa, a depressão das órbitas..., meu senhor! Um tal rei!... Terminou a tua luta. Posso agora tratar-te por tu. Não, não é desacato. Também não receio que me ralhes ou castigues. Já não és rei. No discurso do meu pensamento já não haverá de ora em diante dons nem vós. Acabaram-se os foros de fidalguia, nivelados todos pelo tratamento de simples mortais..., eu sei. A visão dos humildes não é igual à do soberano. Lá em cima, lá muito em cima, como águia, plana ele abarcando horizontes ao mesmo tempo que miudezas do chão..., pediste-me um dia que te debuxasse a figura. Gostaria de a ter executado numa tábuha picta, como é timbre dos mestres pintores, a ouro-pigmento, realgar, cinábrio egípcio e azurite. A tanto não chega a minha habilidade. Pincel não é comigo, apenas o lápis e uma simples aguada de ocre-ferrugem, como vi fazer a um iluminista do scriptorium de São Domingos. Mas a composição..., lembra-me a nossa conversa: que dizes, senhor, sugeria Antão Faria que aí estava connosco a debuxarem-te no trono, a cadeira real encimada por dossel de brocado, a coroa na cabeça e o ceptro na mão, a opa roçagante de tela de ouro, forrada de marta, a desdobrar-se-te aos pés sobre o estrado atapetado de veludo carmesim, e, em baixo, os vassalos de joelhos prestando-te menagem?
Em redor, senhores e oficiais-mores aplaudiam ou contrariavam com murmurinhos trocados e meneios do rosto. Não era essa a minha ideia, contrapunha eu. Então qual? Coisa mais simples e, do mesmo lance, mais representativa..., já te não acode memória para te recordares: pó e nada...., seria assim: o teu vulto a dominar e o indicador direito a apontar a máquina do mundo, no centro a região elemental: a terra, a água, o ar e o fogo; a seguir, por sua precedência, os sete céus: a lua, mercúrio, vénus, o sol e ..., Marte, Júpiter e Saturno..., ajudava faria a minha hesitação. ... Depois, o firmamento, o cristalino, o primeiro móbil; por fim, nas alturas, o empíreo, morada dos bem-aventurados..., não era assim universal a visão de tua alteza? Sorriste de leve, afagando a barba: prouvera fosse, Resende. Senhor do universo só Deus. Mas estás prestes a ser senhor do mundo... A assembleia aprovava num sussurro. Não exageres. Debuxar-me-ás sentado no trono..., ordenavas. ... E colocarei à tua direita o escudo real e a esquerda a esfera..., insistia eu. ... A esfera, sim, dos matemáticos, a esfera astronómica, essa que em miniatura conservo sobre a mesa de trabalho... Eu sei. Vi-a ser fabricada na oficina daquele judeu que veio de Olivença e tem sua forja ali à rua da Ferraria, chama-se Belami e que manha de mãos! Entrava-se na loja e encontrava-se a gente de súbito na gruta de um cíclope: dava ao fole um moço quase nu, tanga enegrecida a cobrir-lhe as vergonhas, a chama do braseiro a sanguinhar-lhe o suor no corpo de efebo. Em brasa com a tenaz retirava Vulcano a haste de ferro que batia sobre a bigorna, arredondava, adelgaçava, o eixo tomava forma e mergulhava-o então a temperar na água fria, que rechinava em nuvens de vapor. De uma calote esférica...
O trabalho que tiveram em medi-la com todo o rigor o meu astrónomo Martim Boémia, o doutor Moisés e mestre Abraão Zacuto! E o zelo em assistirem ao corte e ao aparelhar das armilas, ao melindroso montar da esfera, ao limar de alguma cabeça de cravo mais pontuda. E de repente aí estavam o meridiano, a linha equinocial, os círculos paralelos, o zodíaco, os pólos..., e a terra no centro..., estamos encurralados numa concha, meu senhor. Até o pensamento nos é redondo, mas, quando olhamos a esfera é como se nos soltássemos. Vê, somos deuses a espreitar do cimo de uma nuvem a máquina do mundo! Não blasfemes. Não, não. Apenas mitos da fábula. Seja como for, farás o que te digo. Debuxar-me-ás no trono..., e colocarei à direita as armas reais, com os escudetes aprumados como ordenaste, e à esquerda a esfera..., teimava eu. ... E a meus pés..., rematavas com ar de desfrute... quem, meu senhor? ... A meus pés ajoelharás Antão Faria a prestar-me menagem. Antão Faria, sorridente, pôs o joelho no chão a beijar-te a mão que lhe estendias... Visão real, que tudo domina. Nós, cá de baixo, logo nos encobre qualquer muro de quinta, as árvores do pomar vizinho, o outeiro próximo, logo nos tolhe a meta imediata..., coube-me, no entanto, o privilégio de servir-te na qualidade de teu moço de câmara e de escrivaninha, acompanhar-te dia e noite para onde quer que fosses. Junto do teu ombro, de pé, nos meus dedos pena e aparos sempre prontos, à espera do aceno apenas esboçado, o meu silêncio atento habituado a prescrutar-te pensamentos e desejos..., um trato constante com os senhores que te serviam, a permissão de manuseio das obras da tua livraria, o conhecer esses sábios que diante de ti desdobravam pergaminhos e longas horas contigo permaneciam a explicá-los, seguindo com o ponteiro o contorno das terras e dos mares, o praticar com os grandes navegadores que entravam por teus Paços dentro sem serem anunciados, a trazerem-te sem delongas as novidades por lavar, quero as notícias de pronto, mal lanceis âncora no porto..., ordenaras..., sejam que horas da noite ou do dia forem... notícias sem água nem sabão...» In Fernando de Campos, A Esmeralda Partida, Prémio de Prosa de Ficção Eça de Queirós de Literatura de 1995, Difel, 1994/2008, ISBN 978-972-290-330-1.

Cortesia Difel/JDACT