O inglês
«(…) Amei-a desde que nasci. Etelvina Góis, filha de Angélica Góis.
Crescemos juntos. Minha mãe era a mais bela serrana das terras agrestes de
Molianos. Nunca soube quem era o meu pai. Dizem que morreu durante as Invasões
Francesas, quando toda a região estava a ferro e fogo e os soldados do conde de
Erlon violaram os túmulos de Pedro e de dona Inês à procura de ouro. Foi na
terceira invasão. A do marechal Massena. Mas eu sei que não foi assim. A beleza
de minha mãe foi a sua infelicidade. É-a quase sempre , a beleza da mulher. O abade
era um homem político e mulherengo. A ligeireza da política e a dos amotes
vadios são duas faces da mesma superficialidade. Ou vaidade. Todos os homens poderosos o são, vaidosos
e superficiais, no julgamento dos outros, tidos como inferiores, por natureza.
Dormes, frei João Chiqueda? Por que dizeis tão tarde aquilo que hei-de escrever
de vossa memória, frei Elias? Há horas de safadeza e horas de grandeza. No
mesmo homem. Somos um bocado disso tudo. O amor e o ódio, o bem e o mal, o
infinito e a finitude. Para mim, a hora da Lua é a hora da memória. Mas todas
as horas são boas e más para tudo. Faláveis de vossa mãe. Morreu de parto. Ou de
desgosto. Ou de peçonha conveniente. Ou simplesmente porque era necessário que
morresse. O modo é circunstância.
Que insinuais, frei Elias? Há pouco ouvi dizer a uma mulher do campo
que aqui, na terra dos coutos de Alcobaça, todos somos filhos de frade. Tens razão.
Ou porque o somos mesmo ou porque assumimos a suspeita. No fundo, com algum
orgulho. Para dizer que não somos filhos de ninguém. Porque aqui o Mosteiro é
tudo. O pai de todos. Foi ele que fez esta terra e a desbravou. Com mérito. E é
ele que agora a explora, como senhorio perene, e com ódio de todos. Os povos
esqueceram as origens e só lembram o presente. E o presente, nesta era de paixões incendiadas pela guerra de
liberais e absolutistas, é o peso da exploração e dos impostos. O alijar
da carga secular do senhorio. Cada época tem o seu tempo e o seu destempo. O
Mosteiro morreu no dia em que passou a ser senhorio. Morre-se num momento ou
numa agonia longa. No silêncio ou na orgia da opulência. Mas toda a instituição
tem o fim marcado quando adulterou a sua razão de ser. Frei Elias fez uma pausa
longa, banhada pela luz pálida, dourada, da Lua, que aflorava, enorme, por cima
dos cumes da serra dos Candeeiros, alumiando os túmulos onde os dois frades
haviam feito o seu refúgio. Quem vos criou, frei Elias? Terá sido o Mosteiro?
Não. Um mosteiro de homens não se dá bem com crianças. É um mundo seco de
homens celibatários. Quando minha mãe morreu, uma boa alma a mando do celeireiro
da granja do Cidral, ali à saída de Alcobaça para Valado de Frades, foi-me pôr
à porta de Angélica Góis, que morava numa casa aconchegada, portas afora da
cerca do convento. Angélica, quando me recolheu criança, alertada pelo choro,
na noite que caíra há pouco, ainda viu uma sombra sumir-se nos arbustos. Ficara
de atalaia, para se certificar de que o inocente era recolhido, cumprindo a
recomendação do mandador, que bem sabia o que fazia e os cuidados que mandara
ter no cumprimento da encomenda. Angélica benzeu-se sem saber que fazer, ela
que tivera uma filha que ia nos dois anos, Etelvina, e toda a vida vivera
solta, amiga de amorios e desvarios, mas pouco atreita a cuidados e
maternidades. Olhou os panos que envolviam a criança de linho fino, alvo, de altar
de missa, coisa santa, envolvendo aquele pobre de Cristo, abandonado ao mundo.
E, fixando melhor através da surpresa e da estupefacção, notou aquela
flor-de-lis bordada ao canto, do escudo do Mosteiro.
Caiu do pasmo de tal admiração. Grande mistério ali estava. Concentrou-se,
como se tivesse decifrado um código, e adoptou a criança, ciente de que o tempo
haveria de esclarecer o mistério e dar caminho seguro ao inocente, que, por
certo, teria alguém a olhá-lo de longe, sempre ausente e sempre presente. Ela
sabia bem aquela eloquente linguagem de silêncios. Os frades não falavam. Por
palavras». In Luís Rosa, O Claustro do Silêncio, Editorial Presença, Lisboa, 2002,
ISBN978-972-23-2902-6.
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