sábado, 6 de junho de 2015

O Príncipe. Nicolau Maquiavel. «Ainda em 1913, ao enfrentar o pensamento positivista que ameaçava agora fazer escola nas cátedras e na prática judiciária, apelando em seu socorro para o valor ético do direito natural, um modesto estudo»

jdact

Jamais houve homem menos maquiavélico do que Maquiavel. In Villari

Maquiavel, o prisioneiro do maquiavelismo
«(…) Mas mais: é que há quem esqueça, ou por sistema pareça não querer lembrar, que se Maquiavel não escreveu O Príncipe exactamente ao mesmo tempo (a questão da cronologia nas obras de Maquiavel é controversa e a da articulação destas duas obras ainda o é mais; a tese tradicional, segundo a qual a partir de 1513 Maquiavel se teria desdobrado na escrita de ambas, terminando os Discorsi em 1519, encontra hoje cada vez menor apoio, apesar de Gilbert, em 1953, ter sustentado que pudesse ter existido um tratado sobre as repúblicas escrito por Maquiavel anteriormente à redacção de O Príncipe, pois no início do segundo capítulo desta obra refere que sobre as repúblicas não falará aqui pois que já discorri demoradamente numa outra vez; mais recentemente, uma outra teoria tentou, acentuando o caráter incompleto e fragmentário dos Discorsi, demonstrar que a sua preexistência relativamente a O Príncipe não exclui que Maquiavel, após a sua redacção, não tivesse continuado a trabalhar naqueles, uma vez que não parece curial que a menção com que se inaugura o referido capítulo II fosse ao texto dos Discorsi tal como o conhecemos actualmente; mais, as condições de penúria em que Maquiavel escreveu O Príncipe e o carácter instrumental da obra como tentativa de obter apoio dos de Medici são pouco compatíveis com a ideia de que ele se afadigasse, com ou sem Lívio, com um belo tratado sobre as repúblicas) em que foi redigindo os seus Discursos sobre a Primeira Década de Tito Lívio, obra dedicada ao estudo da República romana, parecendo inseguro que tenha interrompido um livro para continuar o outro, a verdade é que é o pai dos dois tomos, nos quais discorre respectivamente sobre principados e sobre repúblicas: claro que o antimaquiavelismo tosco só sobrevive pelo eclipse desta dualidade e pela crucificação de Niccolò Machiavelli à sua obra politicamente incorreta, como agora passou a ser moda dizer-se, e, assim, quase obnubila os Discorsi para focar, como se do seu cérebro perverso só tivesse saído ruindade, O Príncipe.
Além disso, Maquiavel entrou no panorama editorial português pela porta errada. Logo no princípio tudo lhe correu mal. Livro proibido desde o final do século em que surgiu, antes de ser conhecida a sua obra foram conhecidas as dos seus críticos: a censura dá liberdade aos detractores, garantindo-lhes a impunidade de não permitir que outros aquilatem directamente o que eles vituperam. O antimaquiavelismo teve, assim, o beneplácito do imprimatur que a Maquiavel foi negado. Quando finalmente O Príncipe foi dado à estampa, traduzido por Francisco Morais e editado em Coimbra, pela Atlântida, em 1935,viria antecedido com um comprometedor artigo de Mussolini a servir de introdução, precisamente Benito Mussolini, o Ducce da Itália fascista. Não haveria pior chaga a marcá-lo, para a posteridade, de gafa intelectual.
A obra seria recolhida das bibliografias oficiais e lançadas as hostes do pensamento de raiz católica no seu encalço. O estudo de Vergílio Taborda, difundido em 1939, com a II Guerra Mundial no seu alvor e as sombras nazi-fascistas a ocuparem o seu espaço vital na cultura europeia, é disso concludente exemplo. Mas não ficaria por aí a forte corrente contra as suas ideias. Também no campus do jurídico se travaria estrénua pugna, que passou dos corredores das elites do pensamento para o combate de rua, ao nível mesmo das insignificantes publicações. Ainda em 1913, ao enfrentar o pensamento positivista que ameaçava agora fazer escola nas cátedras e na prática judiciária, apelando em seu socorro para o valor ético do direito natural, um modesto estudo, oferecido pelo autor aos alunos do Colégio de João de Deus, no Porto, ante os dias sombrios que vivemos, lembrava que Maquiavel fez aquilo que nos nossos dias estava reservado ao positivismo jurídico: interessou-se apenas pelo direito positivo, pelo direito observável e apreensível em certo momento e em determinado lugar, relegando para o campo da moral tudo o mais que existe no mundo normativo. Ignorou portanto o verdadeiro sentido ontológico do direito que visa a realização da Justiça. Escreveu-o Manuel José Carvalho Martins Almeida». In Nicolau Maquiavel, O Príncipe, Introdução de José António Barreiros, tradução de Maria Jorge Figueiredo, Editorial Presença, Lisboa, 2008, ISBN 978-972-23-3951-3.

Cortesia de EPresença/JDACT