quarta-feira, 17 de junho de 2015

A Menina que Nunca Chorava Torey Hayden. «Eu e Sheila, enquanto professora e aluna, só estivemos juntas durante cinco meses. A nossa relação durante esse curto período provocou mudanças dramáticas no comportamento de Sheila e alterou drasticamente o curso da sua vida»

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«Foi um momento déjà-vu. De visita à minha mãe, na sua casa de Montana, eu saíra sozinha num domingo de manhã, enquanto ela e a minha filha tinham ido nadar pouco passava das onze horas quando passeava pelo centro comercial. A maior parte das lojas ainda não estava aberta e, por conseguinte, o amplo recinto estava escuro, apenas iluminado pelas luzes de segurança. De repente, avistei-a. A uma certa distância, diante de mim, ao fundo da zona comercial, lá estava ela à sombra de um enorme vaso de plantas. Usava longos cabelos desgrenhados que lhe caíam sobre os ombros e uma franja que quase lhe tapava os olhos; os seus lábios grossos e sensuais sobressaíam numa expressão dramática. Estava de pé e tinha os braços firmemente cruzados diante do peito, os ombros erguidos e uma expressão de desafio no rosto; e, no entanto, havia algo de doloroso naquela ferocidade. Desconfio que ela já sabia que não ia vencer. Eu encontrava-me ao fundo da zona comercial quando a detectei, mas reconheci-a tão depressa que a adrenalina me encheu as veias. Sheila.
Uns segundos mais tarde, recuperei o raciocínio. Não era Sheila, naturalmente. Tinham passado mais de vinte anos desde que assistira à partida de Sheila da minha sala de aula, naquela tarde quente de Junho. Já, não sou a jovem professora impetuosa que era na altura. Os meus dias de ensino, pelo menos por agora, tinham ficado para trás e eu passei da juventude, com alguma relutância, para a meia-idade. Ainda assim, durante aqueles breves instantes no centro comercial, foi como se os anos não tivessem passado. Fui remetida para a década de setenta, quando estava viciada no trabalho, entre os vinte e os trinta anos de idade, voltando a sentir-me, ainda que fugazmente, como a pessoa que tinha sido, e a ver o mundo tal como ele era nessa época. Depois, a realidade começou a impor-se, abafando o incidente, tal como quando estendemos uma película transparente sobre uma página. Aproximei-me da rapariga com curiosidade e coloquei-me ao lado dela, fingindo-me interessada na montra de uma loja perto de nós, de modo a poder observá-la discretamente. Era mais velha do que Sheila, quando a conheci. Devia ter sete anos, ou mesmo oito. O cabelo era escuro, com um tom de um castanho intenso. A minha proximidade não afastou a sua ira. Eu era uma estranha; como tal, ignorou-me, concentrando toda a sua atenção no corredor aberto da enorme loja atrás de mim. Eu não era capaz de descortinar quem a perturbava tanto. Tinham desaparecido no interior da loja, mas ela continuava ali postada, com os punhos cerrados, os cabelos desgrenhados caídos para a frente, emanando uma fúria desesperada e indefesa. Permaneci onde estava, anónima e silenciosa, a cerca de dois metros de distância, fascinada pelo facto de um encontro tão breve poder suprimir tantos anos decorridos entretanto e por verificar que Sheila ainda deixava o meu coração a bater com força.
Eu e Sheila, enquanto professora e aluna, só estivemos juntas durante cinco meses. A nossa relação durante esse curto período provocou mudanças dramáticas no comportamento de Sheila e alterou drasticamente o curso da sua vida. E, ainda que de uma forma menos óbvia naquele tempo, a nossa relação também me transformou dramaticamente e alterou drasticamente o curso da minha vida. Aquela menina produziu um efeito profundo em mim. A coragem, a resistência e a inadvertida capacidade daquela criança para exprimir essa enorme e premente necessidade de ser amada, que todos sentimos (em suma, a sua natureza humana), pôs-me em contacto com a minha própria identidade. Nessa época, eu dava aulas de ensino especializado a uma turma de estudantes universitários, e é a uma dessas estudantes que devo agradecer o facto de me ter oferecido um exemplar do livro de Ron Jones, The Acorn People, e escrito a seguinte dedicatória: Para aTotey, na esperança de que um dia escrevas acerca da Sheila e de todas as outras crianças.
O artigo do jornal era muito pequeno, tendo em consideração o crime a que se referia. Contava o episódio de uma menina com seis anos de idade, que atraíra um menino que ainda mal andava para longe do pátio de recreio, levando-o para um bosque nas imediações, atando-o a uma árvore e pegando-lhe fogo. O rapaz estava no hospital com queimaduras graves. Tudo isso era relatado na página seis, num espaço que não excedia a largura de uma tira de banda desenhada. Li a notícia e, com repulsa, virei a página e prossegui a leitura. Seis semanas mais tarde, Ed, o director do ensino especializado, telefonou-me. Era o dia de regresso das férias de Natal, no início de Janeiro. Vai entrar outra criança para a sua aula. Lembra-se daquela menina que pegou fogo a outro miúdo, em Novembro?» In Torey Hayden, 1995, A Menina que Nunca Chorava, tradução de Fernando Antunes, Editorial Presença, 2007, 2012, Lisboa, ISBN 978-972-233-804-2.

Cortesia de EPresença/JDACT