A descoberta do mundo pelos Ibéricos
«(…) A par disto temos os diários de viagens. Em relação a estes dispomos
de cópias dos textos de Colombo (que podemos suspeitar não serem inteiramente
dignos de crédito), os diários das duas primeiras viagens de Vasco da Gama, o
diário da viagem de Álvares Cabral (um pouco suspeito, é forçoso reconhecê-lo)
e o diário da viagem de Francisco Almeida. Existem outros, mas estes são os
mais importantes, porque nos dão as primeiras impressões dos navegadores acerca
dos povos até então absolutamente desconhecidos. No diário da primeira viagem
de Vasco da Gama são notáveis a precisão objectiva dos dados registados, o
cuidado do seu autor (muito provavelmente Álvaro Velho) em assinalar
tudo o que observou (e Camões, no seu poema, segui-lo-ia frequentemente de muito
perto), mas também o desejo dos navegadores de encontrar, em qualquer parte,
cristãos. Este desejo preocupou durante mais tempo a mente dos Portugueses no
Oriente do que a dos Espanhóis na América; neste diário, Álvaro Velho
chega a supor a existência de uma cidade na costa oriental africana, separada
em duas partes, habitadas exclusivamente por cristãos e muçulmanos; aceita a
ideia de que muitos dos pequenos reinos indostânicos estariam povoados por
católicos; em Melinde pensa ser visitado por irmãos de religião, etc. Apesar da
ausência de verdadeiros cristãos, empreendeu-se o movimento missionário no
Oriente, o que fez com que se gastassem enormes somas sem grande proveito. A
par dos diários de bordo, devemos ter em consideração as cartas dos viajantes,
às quais já nos referimos. Este corpus
tem uma enorme importância, como testemunha que é do descobrimento do mundo,
mas também como documento inspirado pela realidade que estava ao alcance do
observador. Não posso e não quero levantar aqui a discussão um pouco estéril da
sua autenticidade, em particular das cartas de Vespúcio, por exemplo; mas quero
deixar dito que o conjunto de todas estas cartas (e haverá ainda certamente
bastantes a descobrir) representa um dado importante como testemunho das
viagens e contactos estabelecidos com os povos de todo o mundo. Devo referir
como paradigmática a carta escrita do Brasil por Vaz de Caminha, quando do descobrimento
de Cabral: o sentido da objectividade, a preocupação de fazer um relatório
correcto, de observar as coisas dos dois lados (o dos navegadores e o dos Índios),
e tudo isto imbuído de uma verdadeira compreensão por um povo com o qual tinham
estabelecido os primeiros contactos europeus, são particularidades que conferem
a esta carta um lugar único no conjunto da documentação dos Descobrimentos.
Caminha adianta nesta carta a ideia de que os navegadores perseguiriam
a busca dos países ricos em ouro, em prata e em pedras preciosas; fá-lo, aliás,
de uma forma bastante crítica, mas não podemos esquecer que o autor do diário
da primeira viagem de Gama notaria diversas vezes a riqueza dos países da
África oriental e suporia mesmo que, num desses países, as pedras podiam ser
apanhadas em certos lugares com cestos; não devemos também esquecer que,
quando; em Calecut, o mouro Moçaide chega à nau de Vasco da Gama, o texto põe
na boca do muçulmano a boa notícia: os Portugueses encontrariam rubis e esmeraldas
por toda a parte! Depois das cartas e roteiros devemos dar atenção às cartas geográficas
ou náuticas. O planisfério dito de Cantino dá-nos valiosas informações
acerca das mercadorias orientais, através de apontamentos feitos perto dos
lugares mais importantes desta rede comercial que atraía os Portugueses.
Partindo de um outro ponto de vista, devemos salientar que esta carta,
justamente célebre, nos dá ainda valiosas informações acerca da navegação praticada
no oceano Índico no momento da chegada dos Portugueses. Para citar apenas mais
um exemplo, devo dizer que os planisférios de Diogo ou Diego Ribeiro (um
português instalado em Sevilha que trabalhava para os reis de Espanha) contêm
inúmeras informações de grande importância sobre o conhecimento do mundo na sua
época (1525-32), e nomeadamente sobre o conhecimento da América. Os
planisférios de Ribeiro ostentam diversas cartuchas com dados importantes sobre os Descobrimentos e as técnicas
de navegação, tão importantes, que não hesito em declará-las preciosas. Parece-me
necessário acrescentar que muitos cartógrafos do século XVI fornecem também
informações interessantes para a história dos Descobrimentos e do conhecimento
do mundo. Penso que, nesse domínio, seria preciso retomar o estudo das cartas
da época, não mais com a preocupação de as catalogar ou de escrever a biografia
dos seus autores, mas no sentido de se lerem todas as legendas, de observar a transformação
da representação das costas, das ilhas, das terras, etc. Este trabalho é, no
meu entender, uma verdadeira história, tornando-se necessário levá-lo a cabo o
mais cedo possível». In Luís Albuquerque, As Navegações e a sua
Projecção na Ciência e na Cultura, Gradiva, Colecção Construir o Passado, 1987.
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