Os primeiros que se amam...
«Os
primeiros que se amam
são
os poetas e os pintores da geração anterior,
ou
do início do século; tomam
no
nosso espírito o lugar dos pais, permanecendo,
porém,
jovens, como nas suas fotografias amarelecidas.
Poetas
e pintores para quem ser burguês não era vergonha.
Filhos
em vicunha e feltros...
ou
pobres gravatas com gosto a rebelião e a mãe.
Poetas
e pintores que se tornariam famosos
em
meados do século,
com
alguns amigos desconhecidos de grande valor,
mas,
talvez por receio, impróprio para a poesia
(poeta
verdadeiro morto fora dos anos).
Calçadas
de Viena ou de Viareggio! Marginais dos rios
de
Florença ou Paris!
Ressoando
com aqueles pés de filhos
calçados
com sapatos grossos.
O
ímpeto da desobediência cheira a cíclame
sobre
as cidades aos pés dos poetas jovens!
Os
poetas jovens que conversam
depois
de uma infame golada de cerveja,
como
burgueses, independentes,
locomotivas
abandonadas mas ardentes
forçadas
durante algum tempo às linhas cegas,
usufruindo
da falta de pressa da juventude:
convencidos
de poder mudar o mundo purulento
com
quatro palavras apaixonadas e o apelo da rebeldia.
As
mães como mães de aves
nas
pequenas casas burguesas
entrelaçam
o jasmim do ar
com
o significado da luz privada de uma família,
e
do seu lugar numa nação cheia de comemorações.
As
noites, assim, fazem ecoar apenas os passos dos rapazes.
A
melancolia possui infinitos esconderijos
infinitas
como as estrelas,
em
Milão ou numa outra cidade,
de
onde sopra o seu bafo de ar aquecido.
Os
passeios correm ao longo de casas setecentistas,
casas
descodeadas com destinos sacrossantos
(estradas
de aldeia transfigurada em cidade industrial),
com
um longínquo odor românico de estábulos gelados.
É
assim que os poetas jovens fazem experiência do viver.
E
têm para dizer o que dizem os outros,
os
jovens-não poetas (também eles senhores da vida e da inocência)
com
mães que cantam
nas
pequenas janelas dos pátios internos
(buracos
fedorentos para as estrelas que não se vêem).
Onde
se perderam aqueles passos!
Não
basta uma escrupulosa e breve página de memórias,
não,
não basta, talvez apenas o poeta não poeta,
ou
o pintor não pintor,
morto
antes ou depois de uma guerra, em qualquer
cidade
das legendárias deslocações,
encerre
em si aquelas noites, com verdade.
Ah,
aqueles passos, dos filhos
das
melhores famílias da cidade (aquelas
que
seguem o destino da nação
como
uma horda de animais segue o odor,
aloê,
canela, beterraba, cíclame
na
sua migração, aqueles passos de poetas
com
os amigos pintores, que percorrem as calçadas,
falando,
falando...
Mas
se este é o esquema, outra é a verdade.
Reproduz,
filho, aqueles filhos.
Sente
nostalgia deles, mesmo aos dezasseis anos.
Mas
percebe desde logo
que
ninguém fez revoluções antes de ti;
que
os poetas e os pintores velhos ou mortos,
apesar
do ar heróico sob a auréola em que os envolveste,
são-te
inúteis, nada te ensinam.
Goza
as tuas primeiras ingénuas e teimosas experiências,
tímido
agitador, dono das noites livres,
mas
lembra-te que estás aqui só para ser odiado,
para
derrubar e matar».
In
Pier Paolo Pasolini, Teorema, 1968, 1991, 1994, Quasi Edições, tradução de Ana
Tanque, biblioteca Metamorfose, 2005, ISBN 989-552-105-7.
Cortesia
de QuasiEdições/JDACT