terça-feira, 23 de junho de 2015

Os Lagóias e os Estrangeiros. Garcia Castro e Raul Ladeira. «… lagóia virá de langóia, por sua vez proveniente de langor. Portalegre é cidade de há muito industrial, com fábricas que ocupam muita gente; por falta de matérias-primas, ou outras circunstâncias, as fábricas tinham que fechar por algum tempo, os sem-trabalho, os inactivos...»

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«Vista à distância, mas ao alcance directo dos olhos, a cidade dos lagóias mantém hoje uma unidade que pode fazer pensar os estrangeiros. O recorte de Portalegre nas suas zonas altas tem uma marca tão inconfundível como a dentadura de uma chave. Numa curta faixa, sem pedir qualquer movimento de cabeça, sem exigir o menor truque fotográfico, mostram-se os restos do castelo a grande chaminé da fábrica da rolha, o vulto amarelo do palácio, as torres da Sé sobre o Paço do Bispo, o antigo sanatório. Mais à direita, subindo na fronteira com a planície, o cone escuro da Serra do Penha e a sua cruz branca espetada nos rochedos. Aí ninguém vai que não tenha Portalegre em vistoria, mas é necessário descer sem pressas à cidade-dupla, a de cima da freguesia da Sé e a de baixo, de São Lourenço, em que conversam, comem, amam e trabalham (também sempre a subir e a descer) os lagóias. Serão raros os portalegrenses que não sabem que um portalegrense é um lagóia. Quase tão raros como os que sabem o que lagóia quer reamente dizer. O apodo, ou alcunha meio afrontosa, tem provavelmente o percurso das palavras que perdem, ou ganham, alguma coisa com o tempo. No caso parece que se perdeu um n. Alexandre Carvalho Costa, nos seus Gentílicos e Apodos de Portugal Continental, recordou uma conversa com o ex-juiz de direito na cidade, Joaquim Dias Loução.
Poucos portalegrenses, ainda hoje, poderão desmentir esta hipótese publicada em edição de 1973 pela Junta Distrital de Portalegre: lagóia virá de langóia, por sua vez proveniente de langor que mais não é que moleza, prostração, preguiça. O contexto: Portalegre é cidade de há muito industrial, com fábricas que ocupam muita gente; quando por falta de matérias-primas, ou outras circunstâncias, as fábricas tinham que fechar por algum tempo os sem-trabalho, os inactivos demoravam-se às esquinas, nas ruas, nos largos. À espero de melhores dias, continua, dada a sua falta de hábito para os serviços do campo. O juiz Loução rematava nunca ter percebido a desnalização do na de langóia. Mas um lagóia, por intuição pode chegar lá. Na sua vocação escarninha, no gosto pelo ridículo auto-aplicado, largou-se em menor esforço o tal n. Um processo irmão ao das alcunhas com que metodicamente se carimbam os lagóias uns aos outros (eu tenho, em Portalegre) património da cidade. Ou do calão ofensivo com que se cumprimentam e divertem no dia-a-dia os melhores dos melhores amigos, em Portalegre, sem se ofenderem.
Cidade branca onde o negócio da tasca não perde energias, de mulheres escondidas nas janelas, donas de casa de saber quem passa (escreve Carlos Garcia Castro, lagóia), cidade do café-snack-restaurante Tarro, na zono novo, onde há sempre um caso para contar. A cidade onde muitos portalegrenses novos ainda repetem a ladainha aqui nunca se possa nada, mesmo quando se passa, o capital de um distrito que, e isto continua, parece disputar com o Alentejo do sul, ano a ano e taco-a-taco, o estranho campeonato do maior número de suicidas.
E no espaço em que quase todos se conhecem uns aos outros, a bem e a mal o poeta de olhos abertos e o fotógrafo de objectiva paralela (texto fotográfico de Raul Ladeira, outro lagóia) fazem alguns retratos completos. Dos estrangeiros que lá vivem também, sem ser necessário colocá-los como um contrário, um lagóia é só um modelo da sua própria cidade, não deve, nem ele pretende, servir de exemplo para mais lugar nenhum. O estrangeiro de Portalegre é, no seu ângulo pior o que vive subordinado às exigências rascas de Lisboa, a capital terra ardente, não se conhece ninguém, canseira da igualdade. É a amiba descarada que se atreve a comer açorda sem coentros, mas que parece poder puxar um lagóia para a armadilha: Inaugurarmos nossos velhos espaços onde só haja, como nós, medíocres. Quem diz isto assim, afinal de contas, só pode gostar muito da sua cidade, vista por fora e vista de dentro.
Estas palavras duplas, de lagóia e estrangeiro foram escritas em Lisboa em Outubro de 1992». In Rui Cardoso Martins

In Carlos Garcia Castro e Raul Ladeira, Os Lagóias e os Estrangeiros, edição da CM de Portalegre, 1992, Depósito legal nº 53094.

Cortesia de CMP/JDACT