«Vista
à distância, mas ao alcance directo dos olhos, a cidade dos lagóias mantém hoje
uma unidade que pode fazer pensar os estrangeiros. O recorte de Portalegre nas
suas zonas altas tem uma marca tão
inconfundível como a dentadura de uma chave. Numa curta faixa, sem
pedir qualquer movimento de cabeça, sem exigir o menor truque fotográfico,
mostram-se os restos do castelo a grande chaminé da fábrica da rolha, o
vulto amarelo do palácio, as torres da Sé sobre o Paço do Bispo, o antigo sanatório.
Mais à direita, subindo na fronteira com a planície, o cone escuro da Serra do
Penha e a sua cruz branca espetada nos rochedos. Aí ninguém vai que não tenha Portalegre em vistoria, mas é necessário
descer sem pressas à cidade-dupla, a de cima
da freguesia da Sé e a de baixo, de
São Lourenço, em que conversam, comem, amam e trabalham (também sempre a subir
e a descer) os lagóias. Serão raros os portalegrenses que não sabem que um
portalegrense é um lagóia. Quase tão raros como os que sabem o que lagóia quer
reamente dizer. O apodo, ou alcunha meio afrontosa, tem provavelmente o percurso
das palavras que perdem, ou ganham, alguma coisa com o tempo. No caso parece
que se perdeu um n. Alexandre
Carvalho Costa, nos seus Gentílicos e
Apodos de Portugal Continental, recordou uma conversa com o ex-juiz de
direito na cidade, Joaquim Dias Loução.
Poucos
portalegrenses, ainda hoje, poderão desmentir esta hipótese publicada em edição
de 1973 pela Junta Distrital de
Portalegre: lagóia virá de langóia, por
sua vez proveniente de langor que mais não é que moleza, prostração, preguiça. O contexto: Portalegre é cidade de há muito industrial, com fábricas que ocupam
muita gente; quando por falta de matérias-primas, ou outras circunstâncias, as
fábricas tinham que fechar por algum tempo os sem-trabalho, os inactivos demoravam-se
às esquinas, nas ruas, nos largos. À espero de melhores dias, continua,
dada a sua falta de hábito para os
serviços do campo. O juiz Loução rematava nunca ter percebido a
desnalização do na de langóia. Mas
um lagóia, por intuição pode chegar lá. Na sua vocação escarninha, no gosto
pelo ridículo auto-aplicado, largou-se em menor esforço o tal n. Um processo irmão ao das alcunhas
com que metodicamente se carimbam os lagóias uns aos outros (eu tenho, em Portalegre)
património da cidade. Ou do calão ofensivo com que se cumprimentam e divertem
no dia-a-dia os melhores dos melhores amigos, em Portalegre, sem se ofenderem.
Cidade
branca onde o negócio da tasca não perde energias, de mulheres escondidas nas
janelas, donas de casa de saber quem passa (escreve Carlos Garcia
Castro, lagóia), cidade do café-snack-restaurante Tarro, na zono novo, onde há sempre um caso para contar. A
cidade onde muitos portalegrenses novos ainda repetem a ladainha aqui nunca se possa nada, mesmo quando
se passa, o capital de um distrito que, e isto continua, parece disputar com o
Alentejo do sul, ano a ano e taco-a-taco, o estranho campeonato do maior número
de suicidas.
E
no espaço em que quase todos se conhecem uns aos outros, a bem e a mal o poeta
de olhos abertos e o fotógrafo de objectiva paralela (texto fotográfico de Raul Ladeira, outro lagóia) fazem alguns retratos
completos. Dos estrangeiros
que lá vivem também, sem ser necessário colocá-los como um contrário, um lagóia
é só um modelo da sua própria cidade, não deve, nem ele pretende, servir de
exemplo para mais lugar nenhum. O estrangeiro de Portalegre é, no seu ângulo pior
o que vive subordinado às exigências rascas de Lisboa, a
capital terra ardente, não se conhece
ninguém, canseira da igualdade. É a amiba descarada que se atreve a comer açorda sem coentros, mas que parece
poder puxar um lagóia para a armadilha: Inaugurarmos
nossos velhos espaços onde só haja, como nós, medíocres. Quem diz isto
assim, afinal de contas, só pode gostar muito da sua cidade, vista por fora e
vista de dentro.
Estas
palavras duplas, de lagóia e estrangeiro foram escritas em Lisboa em Outubro de
1992». In Rui Cardoso Martins
In
Carlos Garcia Castro e Raul Ladeira, Os Lagóias e os Estrangeiros, edição da CM
de Portalegre, 1992, Depósito legal nº 53094.
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