«A
gesta dos Cabrais foi sempre gente de palavra, estavam mesmo isentos do
juramento de fidelidade ao rei. Pedro Álvares Cabral honrou essa tradição,
serviu em lealdade,
combateu
com bravura, honrou os seus preceitos, até que um dia virou costas ao rei e nunca
mais levantou a espada ao seu serviço. Porquê?
Esta é umas das muitas perguntas que rodeiam a vida deste nobre guerreiro
nascido em Belmonte, no coração das serranias, e fez nome nas lonjuras do mar.
É forçoso perguntar que força o ergueu junto d'el-rei Manuel I e o levou a
substituir Vasco da Gama na armada para as índias. E se terá chegado às terras
de Vera Cruz por ordem do rei ou, pelo contrário, ancorou no Novo Mundo à sua
revelia. No limiar do Renascimento, quando a luz irrompia nas trevas para maior
lucidez dos homens, olhando para um reino frágil, doente, desgastado em guerras
lá nos fins do mundo, talvez Cabral tenha olhado para o seu percurso e colocado
a si próprio muitas questões. E talvez tenha questionado o seu serviço a um
Deus e a um rei, em nome dos quais ele fora apenas um instrumento de morte. Talvez
se tenha questionado sobre o papel de Portugal no mundo. No Norte de África.
Nas terras de Vera Cruz. No longínquo no Oriente.
Pedro
Álvares Cabral talvez não tenha gostado das respostas às suas próprias
perguntas. Talvez não tenha gostado de ver a índole de homens a quem servia,
talvez não tenha gostado do que ele acreditava vir a ser o futuro pouco
promissor do seu reino despovoado, pobre e perdido em guerras além-mar. Talvez
por isso tenha virado as costas à vã glória dos homens para se reencontrar consigo
mesmo e com o verdadeiro Deus. É preciso entrar neste livro e seguir os seus
passos, só assim se compreendendo as suas lealdades, as suas batalhas, os seus
pesares, os seus amores e o seu destino de desprendimento. Segundo George
Orwell, o passado é a coisa mais imprevisível
do mundo, não pára de se transformar. É que revisitar o tempo passado dá
sempre azo a novas questões e novas respostas. Assim, a nossa visão da história
depende da coragem das nossas perguntas. E quando alguém se pergunta porque
repousa em campa rasa um herói nacional como Pedro Álvares Cabral, é
forçoso recapitular a sua vida, as suas relações com os poderes da época, é
preciso mergulhar nas sombras da história.
Os
livros académicos quase sempre nos passaram uma visão higiénica da história e
dos seus heróis, uma cronologia de datas e nomes, e uma sinopse cheia de
convicções ideológicas. Mas, mais do que nomes e datas, importa observar
pessoas e contextos. O passado tem as virtudes e os defeitos dos homens que lhe
deram corpo, e isso não pode ser ignorado. Olhar para os Descobrimentos
portugueses é perceber o olhar mais-além de João II, a humilde inteligência de
Bartolomeu Dias, a ganância alucinada de Manuel I, a ambição mal-educada de
Vaco da Gama, os primores de honra de Pedro Álvares Cabral. Se deixarmos de
olhar a floresta e tivermos um olhar atento a cada árvores de per si, veremos que nem todos os heróis
foram perfeitos, e por isso, muita da nossa história nacional é feita de
enganos. Um bom incentivo para ler novos ângulos de abordagem ao nosso passado.
Calecute
Quando
a sua mão descia num gesto brusco morriam homens e mulheres. E a sua mão desceu
uma e outra vez e a cada gesto respondiam com estrondo as peças de artilharia
envoltas em fumo, vomitando pelouros, esferas de pedra ou ferro forjado, que
rasgavam os ares e estilhaçavam Calecute, a mais rica cidade portuária das
costas malabares, nos mares das índias (o termo Índia era ainda vago,
abrangia um vasto território de vários reinos e vários soberanos; esta pluralidade
levava à expressão índias; só após a
exploração e delimitação do território se passou a utilizar o termo Índia
para designar a península indiana mais alguns territórios e ilhas). Era o poder
divino de tirar a vida a milhares de infiéis; um poder de quem servia a Deus,
mas de quem obedecia igualmente ao poder terreno de um homem, el-rei de
Portugal, Manuel I. Pedro Álvares Gouveia nascera em Belmonte e forjara o seu
carácter no granito duro da Serra da Estrela, em terras do interior, já bem
cerca da raia castelhana. Era o segundo filho varão de Fernão Cabral e Isabel
Gouveia. Segundo os costumes da época, por não ser primogénito, usava o apelido
da mãe e não o do pai. Apesar de tudo, era conhecido como O Cabral, pois
apresentava uma complexão física muito similar à de seu pai, o conhecido Gigante da Beira. O seu irmão
mais velho, João Cabral, companheiro de todas as horas, nome cimeiro da linhagem,
concedeu-lhe mais tarde a prerrogativa de usar o nome da família e o brasão dos
Cabrais. Pedro tudo faria para
dignificar a honra recebida e deixar o nome nos anais da história de Portugal».
In
João Morgado, Vera Cruz, Clube do Autor, Lisboa, 2015, ISBN 978-989-724-207-6.
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