sexta-feira, 19 de junho de 2015

Beatriz e Virgílio. Yann Martel. «Afinal, aquelas pessoas tinham lido o seu livro e este tivera impacto sobre elas, caso contrário para que haviam de se dirigir a ele? Esses encontros tinham uma qualidade íntima: dois desconhecidos que se juntavam…»

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«O segundo romance de Henry escrito, tal como o primeiro, sob um pseudónimo, tivera êxito. Ganhara prémios e fora traduzido em dúzias de línguas. Henry era convidado para lançamentos de livros e festivais literários em todo o mundo; inúmeras escolas e clubes de leitura adoptaram o livro; via frequentemente pessoas a lê-lo em aviões e comboios; Hollywood pretendia adaptá-lo ao cinema, e assim por diante. Contudo, Henry continuou a viver uma vida essencialmente normal e anónima. Os escritores raramente se tornam figuras públicas, pois, com toda a justiça, é nos seus livros que se concentra a publicidade. Os leitores reconhecem facilmente a capa de um livro que tenham lido, mas aquele homem que está ali no café, é..., é..., bem, é difícil dizer. Não tem o cabelo comprido? Oh, já, se foi embora. Mas quando era reconhecido, Henry não se importava. Na sua experiência, o encontro com um leitor era um prazer. Afinal, aquelas pessoas tinham lido o seu livro e este tivera impacto sobre elas, caso contrário para que haviam de se dirigir a ele? Esses encontros tinham uma qualidade íntima: dois desconhecidos que se juntavam, mas para debater um assunto externo, um objecto de fé que os comovera a ambos, pelo que todas as barreiras caíam. Não havia lugar para mentiras ou afirmações bombásticas. As vozes mantinham-se baixas, os corpos inclinavam-se um para o outro, os egos revelavam-se. Por vezes surgiam confidências pessoais. Um leitor contou a Henry que lera o romance na prisão. Uma leitora disse-lhe que o lera enquanto lutava contra um cancro. Um pai confidenciou-lhe que toda a família o lera em voz alta após o nascimento prematuro e posterior morte do seu bebé. E houvera outros encontros semelhantes. Em cada caso, um elemento do seu romance, uma frase, uma personagem, um incidente, um símbolo, ajudara-os a superar uma crise nas suas vidas. Alguns dos leitores com quem Henry conversara emocionavam-se profundamente. Isso nunca deixava de o afectar, pelo que se esforçava sempre para reagir de uma forma que os tranquilizasse.
Nos encontros mais típicos, os leitores queriam apenas expressar o seu apreço e admiração, que acompanhavam de vez em quando com uma oferta material, um presente comprado ou feito pelos próprios: uma fotografia, uma marca de livros, um livro. Podiam desejar fazer uma ou duas perguntas, com timidez, sem quererem incomodar. Ficavam gratos por qualquer resposta que ele lhes desse. Pegavam no livro assinado por ele e apertavam-no contra o peito com ambas as mãos. Os mais ousados, que eram geralmente, mas nem sempre, adolescentes, perguntavam por vezes se podiam tirar uma fotografia com ele. Nessas ocasiões, Henry levantava-se, punha o braço sobre os ombros deles e sorria para a câmara. Os leitores afastavam-se com os rostos iluminados porque o tinham conhecido, enquanto o seu se iluminava porque os conhecera a eles. Henry escrevera um romance porque havia dentro de si um vazio que precisava de ser preenchido, uma pergunta que precisava de ser respondida, um pedaço de tela que precisava de ser pintado, aquele misto de ansiedade, curiosidade e alegria que está na origem da arte, e ele preenchera o vazio, respondera à pergunta, dera cor à tela, tudo por si próprio, porque tinha de o fazer. E agora havia perfeitos desconhecidos que se aproximavam dele e lhe diziam que o seu livro preenchera um vazio neles, respondera a uma pergunta deles, levara cor às vidas deles. O conforto dos desconhecidos, fosse um sorriso, uma palmada no ombro ou uma palavra de elogio, é verdadeiramente um conforto.
Quanto à fama, essa era como se não existisse. A fama não era uma sensação como o amor, ou a fome, ou a solidão, que brota do próprio espírito e é invisível a um olhar exterior. Era um fenómeno inteiramente externo, proveniente do espírito dos outros. Existia na forma como as pessoas o olhavam ou se comportavam para com ele. Nesse sentido, ser famoso não era diferente de ser gay, ou judeu, ou um membro de uma qualquer minoria visível: é-se o que se é, e depois os outros projectam as suas próprias noções sobre nós. Henry ficara essencialmente inalterado pelo êxito do seu romance. Continuava a ser a mesma pessoa que tinha sido anteriormente, com as mesmas forças e as mesmas fraquezas. Nas raras ocasiões em que um leitor o abordava de modo desagradável, recorria à última alma do escritor que escreve sob pseudónimo: não, não era o fulano de tal, era apenas um tipo chamado Henry». In Yann Martel, Beatriz e Virgílio, tradução de Fátima Andrade, Editorial Presença, Lisboa, 2010, ISBN 978-972-234-385-5.

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