1805
- 1806
«(…)
A rapariga viera sentar-se numa cama de folhas velhas de jornal, abrigada da
frente ribeirinha numa daquelas ruelas interiores da cidade. A menina que
geralmente se sentava ali a estender castanhas assadas sobre uma pequena
fogueira improvisada começava por volta daquela hora e só regressava a casa
quando escurecia. Durante todo o dia não comia mais do que três castanhas
assadas, a fim de não prejudicar o negócio. A mãe assim a instruíra e ela
obedecia, porque as irmãs, bem mais pequenas, comiam apenas um caldo aguado a
meio do dia, e ela apiedava-se da sua fome. Teria dois ou três anos a menos que
Mariana e um aspecto bem menos cuidado. Aquecia as mãos na chama antes de recolher
as castanhas com gestos rápidos, e o cabelo apresentava-se gorduroso sob um
xaile puído, enrolado em torno do pescoço e das costas. Tinha os pés envoltos
em tiras de pano sujas e as unhas encardidas, as mesmas com que assou as
castanhas que o barão João recebeu para entregar à filha, envoltas num pequeno
pedaço de jornal. Fechou-lhe a mão em concha sobre três castanhas quentes, após
estender uma pequena moeda à criança. Mariana arquejou ante o inesperado prazer
que a sensação de algo quente na mão lhe causou naquela manhã de orvalho. O
sorriu-lhe uma última vez, paternalmente: para vos manter aquecida durante a
viagem.
Mariana
arriscou um olhar à berlinda, apenas para descobrir que a voz da mãe guinchava
contidamente ordens à criada para que posicionasse correctamente o tijolo
quente, envolto em lã, sob os seus pés enregelados. Dona Sofia tinha ciúmes da
relação afectuosa da filha com o pai. Tratando-se de uma mulher fria e de
criação brusca, empurrada às pressas para um barão à época falido, antes passar fome ao lado de um barão do que
refastelar-se em abundância com um ourives, não conhecera outro carinho que
não o do casamento. E vira-se rapidamente preterida em favor da filha. Era por
isso que dizia ter-se valido dos conhecimentos dos pretos libertos que povoavam
os recantos mais obscuros da cidade para se precaver de uma nova gravidez. Uma
filha fora mais do que suficiente para lhe roubar inevitavelmente o amor do
marido, teria de ser tola para o afastar ainda mais.
Os
olhos dóceis do barão João, escuros como os de Mariana, não viam mais nada
desde que aquela menina nascera. A vaidade inicial de dona Sofia, por julgar
que os três perfaziam um bonito retrato de família, desfez-se com prontidão.
Era raro ver-se um homem tão apegado a uma criança, ainda para mais se a mesma
era do sexo feminino. Acabou por achar a filha indigna de tantas atenções e
aborrecia-se com os seus mimos e caprichos, que não passavam de um espelho dos
seus. A comunicação recente de que seria obrigada a acompanhar Mariana ao Douro
e a não regressar, porque o marido estava condenado a uma morte lenta,
enchera-a de lágrimas difíceis de tragar. Mesmo nas suas últimas horas, o
marido estava mais preocupado com o bem-estar daquela fedelha mimada do que
consigo próprio. Tentara convencê-lo de que deveriam ficar e olhar pela sua
saúde, prometera isso perante a Igreja, mas o barão metera-lhe uma carta por
entre os dedos e reafirmara as suas intenções de que rumassem a Arraiais,
entregassem a propriedade por casamento a um inglês qualquer que pretendia
tirar proveito da região vinícola do Douro e não voltassem ao sul a não ser que
ele lhes desse ordens nesse sentido». In Célia Correia Loureiro, A Filha do Barão,
1809, Marcador Editora, 2013/2014, ISBN 978-989-754-039-4.
Cortesia
de Marcador/JDACT