1805
- 1806
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Sentiria também saudade de ter à vista os vendedores de mel, as aguadeiras, os
homens que percorriam a Praça do Comércio com fusos e rocas, os sapateiros nas
esquinas, os ferreiros a equipar cavalos para viagens mais longas, os
vendedores de tripas. Havia ainda a emoção dos sobressaltos à porra da Casa da
Gazeta, no Terreiro, as bostas das bestas espalhadas pelo chão, quase como
armadilhas a que deveriam esquivar-se quando caminhavam com os seus elegantes
sapatinhos rasos, e a necessidade de se acautelar nas esquinas, pois nem todos
os cocheiros eram prudentes ao dobrar um edifício. Geralmente, dona Sofia e
Nuna, a criada sexagenária da casa, não a deixavam aproximar-se daquele género
de gente. Mariana, impressionada com os seus odores e pés descalços, não tinha
interesse, fosse como fosse, em aproximar-se. Falavam demasiado alto, por vezes
com sotaques estranhos que se afastavam daquilo que era o círculo culto da
cidade e, numa única frase, tropeçavam incontáveis vezes no português correcto
que a régua de madeira do professor Manuel Jardim a ajudara a interiorizar. Não
se deixava tentar pelos caramelos e desviava o olhar dos rosários de madeira
tosca que tentavam impingir-lhe quando atravessava as galerias da Praça em
direcção ao edifício onde o pai se debruçava diariamente sobre os livros de
contas. Só se detinha nos meses logo após o Verão, em que as castanhas a assar
no chão enchiam os ares da capital do Império com uma fragrância irresistível.
Dona
Sofia aperrou melhor o xaile de veludo verde-seco, preso com alfinetes sobre a
gola rendada do vestido que trajava para a viagem. O facto de ainda não
chuviscar, nessa madrugada de meados de Novembro, não significava que, a
qualquer momento, a lama e os ventos não fossem desestabilizar a berlinda no
longo caminho que tinham pela frente. Dona Sofia despedira-se do marido com um
beijo terno no rosto, suficientemente discreta para que as três criadas e a
mestra que as acompanhariam não se sentissem tentadas a dirigir o olhar aos
seus senhores. Continuaram a carregar baús de porcelana da dinastia Qianlong,
do século ultrapassado, embalada em jornais, bem como linhos, lãs e cobertores,
a fim de enfrentarem o Inverno no Douro. As suas salvas de prata, os seus aquários
de porcelana, potes, chaleiras, bacias e candelabros apinhavam-se em monos
maciços que seguiriam em chocalho constante ao longo de toda a viagem. Sem mencionar
os baús com uma enorme quantidade de vestidos da baronesa e da menina, que
tinham sido aferrados com correias de couro à rectaguarda da berlinda, assim
como ao topo da carruagem dos serventes.
Mariana
torcia desde já o nariz a esse mesmo cheiro; ao do couro dos arreios e ao odor
intenso dos cavalos em esforço. O pai sabia que detestava sentir-se enjaulada,
mas, sabendo-a apenas com catorze anos, quis que desse algum valor à aventura.
Sem a aprovação de dona Sofia, que não gostava de ser ignorada, instigou a filha
a descer novamente da berlinda. Mariana fê-lo de imediato, animada pela
perspectiva de que, talvez, o pai tivesse mudado de ideias. O pai, barão João,
apoiou-a sob o braço, ajeitou-lhe melhor o capuz preto que a protegia e
encaminhou-a para a esquina, a cinquenta passos de distância da berlinda e da
carruagem que eram carregadas. O dia mal despontara e, por conseguinte, estava
suficientemente escuro em Lisboa para que um pai e uma filha pudessem trocar
algum carinho com discrição. O barão acariciou-lhe o rosto com a mão, onde a
tinta da pena deixara manchas difíceis de disfarçar, e sorriu-lhe já com
saudade. Levou o lenço à boca ao ser acometido por um ataque de tosse, para evitar
a transmissão da doença, e Mariana entristeceu ante aquele gesto que pretendia protegê-la.
O seu pai era um nobre tão digno, envolto numa capa de lã escura, que ela não
resistiu ao impulso de o cingir pela cintura. Era um homem na flor da idade e
de constituição forte, que por um instante a apertou sem dificuldade contra o
peito. Depois, evocando uma vez mais a doença, afastou-a com firmeza.
Fitou
os seus olhos redondos, escuros como a noite no campo, e a inocência que as
longas pestanas lhes emprestavam. O vulto de velas e embarcações ao longe no
Tejo pareceu distraí-lo dessa promessa de beleza e feminilidade, mas Mariana
soube que a fitava porque lhe era difícil prender o olhar no seu durante mais
tempo. A despedida doía a ambos. Procurou-lhe a mão e apertou-lha,
descobrindo-lha trémula. Não vos preocupeis, paizinho. Eu cuido da mãe. Sabeis
que a vossa mãe é uma criatura difícil, filha. Tende paciência com ela. Afagou-lhe
os ombros, com o olhar posto no assador de castanhas». In Célia Correia Loureiro, A
Filha do Barão, 1809, Marcador Editora, 2013/2014, ISBN 978-989-754-039-4.
Cortesia
de Marcador/JDACT