quinta-feira, 11 de junho de 2015

Galveias. José Luís Peixoto. «O João Paulo parecia ter um certo gosto em apontar para o portão de ferro. Rodeado de motas e de bocados de motas, os olhos brilhavam-lhe. Sempre que fosse preciso, limpava as mãos a um esfregão de desperdício…»

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«Escuta lá, de quem é que tu és filho? Sou o filho do Peixoto da serração e da Alzira Pulguinhas»

Janeiro de 1984
«(…) Durante um minuto inteiro, Galveias foi atravessada por uma sucessão de explosões contínuas, sem um intervalo pequeno, sem uma folga. Ou também é possível que tenha sido uma só explosão, longa, a durar um minuto inteiro. Em qualquer dos casos, explosões ou explosão, chegou como um pau espetado no peito, como o terror durante um minuto, Segundo a segundo a segundo. Foi como se a terra estivesse a partir-se ao meio, como se o planeta inteiro estivesse a partir-se: uma rocha do tamanho deste planeta, dura e negra, basalto, a partir-se. Ou talvez fosse o céu, feito dessa mesma rocha, a partir-se em duas partes maciças, mas separadas sem remédio. Talvez esse céu, tantas vezes dado como seguro, estivesse desde sempre à espera daquele momento. Talvez aquela explosão do além trouxesse solução às perguntas mal respondidas. A vitrina do café do Chico Francisco estourou numa remessa de pedaços mais pequenos do que uma unha. Era vidro grosso, com muitos anos em cima. Um dos homens que lá estava, o Barrete, disse que viu a vitrina formar uma bola no centro, conforme uma bola de futebol, disse que só depois se desfez em todas as direcções. Pode calcular-se o estrondo de um caso desses, mas não é garantido que tenha sido mesmo assim. A vitrina era transparente e muitos duvidaram que, àquela hora da noite, alguém lhe conseguisse distinguir formas. Além disso, o Barrete era amigo do branco, do tinto e da pinga de qualquer cor, e a vitrina com formato de bola já parecia muita história. O Barrete ficava ofendido se alguém duvidava e, como prova, tinha uma ferida funda, fresca, que abria com a ponta dos dedos para mostrar. Tinha sido feita por um caco de vidro espetado no antebraço. Só conseguiu proteger-se a tempo porque estava a olhar para a vitrina quando rebentou. Segundo ele, o caco de vidro ia-lhe direito à vista.
O João Paulo parecia ter um certo gosto em apontar para o portão de ferro. Rodeado de motas e de bocados de motas, os olhos brilhavam-lhe. Sempre que fosse preciso, limpava as mãos a um esfregão de desperdício e contava que, quando tudo começou, estava a mexer na motorizada do Funesto. Concordava que tinha parecido o fim do mundo, mas afiançava que nem se lembrara de medo. Acreditou que eram uns sujeitos da Ervideira a procurá-lo. Tinham ficado incomodados com uma série de habilidades que fez à porta de um baile em Longomel ou na Tramaga, já não se lembrava bem. Achou que estavam três ou quatro desses malandros a dar pontapés no portão da oficina. Por fim, tinham vindo cumprir a ameaça. Enfiou um capacete, agarrou numa chave inglesa das maiores e avançou sobre o portão. Assim que o abriu, levou com ele de chapa nos dentes, voou atordoado e bateu despedido com as costas no cimento. Este era o ponto em que se ria mais alto. Ria-se à gargalhada, forçando aqueles que o ouviam a rir também. De olhos espantados, riam por cortesia. Só as gargalhadas dele eram sinceras. Estas eram conversas fáceis de vários dias depois. Na hora, ao longo daquele minuto inteiro, as pessoas mudaram de cor. Durante o apocalipse, ninguém tem espírito para graças. Identificando essa gravidade, o Sem Medo ouvia as descrições feitas pelos homens do terreiro, encolhia os ombros e admirava-se em silêncio. Perante as mesmas histórias, contadas por vizinhas, a mulher do Sem Medo escancarava os olhos, desentupia os ouvidos com o mindinho, e calava-se também. Na hora do sucedido, estavam nus, na cama, a pensarem noutros temas». In José Luís Peixoto, Galveias, Quetzal Editores, Lisboa, 2014, ISBN 978-989-722-179-8.

Cortesia de Quetzal/JDACT