«Escuta lá, de quem é que tu és filho? Sou o filho do
Peixoto da serração e da Alzira Pulguinhas»
Janeiro de 1984
«(…) Durante um minuto inteiro, Galveias foi atravessada por
uma sucessão de explosões contínuas, sem um intervalo pequeno, sem uma folga.
Ou também é possível que tenha sido uma só explosão, longa, a durar um minuto
inteiro. Em qualquer dos casos, explosões ou explosão, chegou como um pau
espetado no peito, como o terror durante um minuto, Segundo a segundo a
segundo. Foi como se a terra estivesse a partir-se ao meio, como se o planeta
inteiro estivesse a partir-se: uma rocha do tamanho deste planeta, dura e
negra, basalto, a partir-se. Ou talvez fosse o céu, feito dessa mesma rocha, a
partir-se em duas partes maciças, mas separadas sem remédio. Talvez esse céu,
tantas vezes dado como seguro, estivesse desde sempre à espera daquele momento.
Talvez aquela explosão do além trouxesse solução às perguntas mal respondidas. A
vitrina do café do Chico Francisco estourou numa remessa de pedaços mais pequenos
do que uma unha. Era vidro grosso, com muitos anos em cima. Um dos homens que
lá estava, o Barrete, disse que viu a vitrina formar uma bola no centro,
conforme uma bola de futebol, disse que só depois se desfez em todas as direcções.
Pode calcular-se o estrondo de um caso desses, mas não é garantido que tenha sido
mesmo assim. A vitrina era transparente e muitos duvidaram que, àquela hora da
noite, alguém lhe conseguisse distinguir formas. Além disso, o Barrete era
amigo do branco, do tinto e da pinga de qualquer cor, e a vitrina com formato
de bola já parecia muita história. O Barrete ficava ofendido se alguém duvidava
e, como prova, tinha uma ferida funda, fresca, que abria com a ponta dos dedos
para mostrar. Tinha sido feita por um caco de vidro espetado no antebraço. Só conseguiu
proteger-se a tempo porque estava a olhar para a vitrina quando rebentou.
Segundo ele, o caco de vidro ia-lhe direito à vista.
O João Paulo parecia ter um certo gosto em apontar para o
portão de ferro. Rodeado de motas e de bocados de motas, os olhos
brilhavam-lhe. Sempre que fosse preciso, limpava as mãos a um esfregão de
desperdício e contava que, quando tudo começou, estava a mexer na motorizada do
Funesto. Concordava que tinha parecido o fim do mundo, mas afiançava que nem se
lembrara de medo. Acreditou que eram uns sujeitos da Ervideira a procurá-lo.
Tinham ficado incomodados com uma série de habilidades que fez à porta de um
baile em Longomel ou na Tramaga, já não se lembrava bem. Achou que estavam três
ou quatro desses malandros a dar pontapés no portão da oficina. Por fim, tinham
vindo cumprir a ameaça. Enfiou um capacete, agarrou numa chave inglesa das
maiores e avançou sobre o portão. Assim que o abriu, levou com ele de chapa nos
dentes, voou atordoado e bateu despedido com as costas no cimento. Este era o
ponto em que se ria mais alto. Ria-se à gargalhada, forçando aqueles que o
ouviam a rir também. De olhos espantados, riam por cortesia. Só as gargalhadas
dele eram sinceras. Estas eram conversas fáceis de vários dias depois. Na hora,
ao longo daquele minuto inteiro, as pessoas mudaram de cor. Durante o
apocalipse, ninguém tem espírito para graças. Identificando essa gravidade, o Sem
Medo ouvia as descrições feitas pelos homens do terreiro, encolhia os
ombros e admirava-se em silêncio. Perante as mesmas histórias, contadas por
vizinhas, a mulher do Sem Medo escancarava os olhos, desentupia os ouvidos
com o mindinho, e calava-se também. Na hora do sucedido, estavam nus, na cama,
a pensarem noutros temas». In José Luís Peixoto, Galveias, Quetzal
Editores, Lisboa, 2014, ISBN 978-989-722-179-8.
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