«Não podemos esquecer..., que a
história das mulheres, a verdadeira história das mulheres, conta apenas vinte
anos. Todo o resto foi filtrado pelos homens, pelos que escreviam ou mandavam
escrever». In A Deusa Sentada
O
romance histórico como ponto de fuga
«(…) Devemos ter logo em
consideração a sua relação privilegiada com o realismo, não no sentido estrito
de escola ou período literário, mas numa concepção trans-histórica do termo: the representation of experience in a manner
which approximates closely to description of similar experience in non-literary
texts of the same culture. Nesse sentido, podemos dizer que, embora o
romance histórico tenha nascido sob o signo do romantismo, Scott não é um autor
romântico, mas sim realista. Isto porque se esforçou por criar uma ilusão de
realidade com base em factos historiográficos a que acrescentava dados
fictícios. Para assegurar tal ilusão, Scott e seus imitadores recorreram a
estruturas como a narração
heterodiegética omnisciente, o estilo indirecto livre, descrições minuciosas e
um grande investimento nos diálogos, onde diferentes pontos de vista são
colocados frente a frente. São recursos que dinamizam a acção e constroem uma
maior verosimilhança e objectividade. Igualmente determinadoras do realismo
característico da forma clássica do romance histórico são as estratégias seguidas
por estes romancistas para camuflar a juntura que separa o mundo fictício do mundo
real e que constituíam, no fundo, constrangimentos a que se sujeitavam. Brian demonstra
que o romance histórico clássico respeita factos relativos a pessoas e eventos
históricos. Para evitar conflitos com o registo histórico, aquele tende a focar
as áreas obscuras da
historiografia. Por outras palavras, restringe-se à exploração temática, de uma
forma verosímil, dos espaços em branco, das lacunas deixadas no registo
histórico oficial. Manzoni concebia o romance histórico como uma humanização do
que a História deixara em silêncio, os sentimentos, as vontades e as palavras
dos actores da História. Decorrente da preocupação em ser verosímil, avulta o
cuidado em evitar incongruências históricas, respeitando os costumes e
mentalidades próprios de cada época, ou seja, evitando a todo o custo
anacronismos, regras que os romancistas históricos pós-modernos frequentemente
subvertem. Segundo Lukacs, apenas um anacronismo se impunha como nécessaire: a expressão clara dos
sentimentos e pensamentos das personagens, sem que isso implique modernização
da sua psicologia, para maior entendimento das mesmas, e a modernização da
linguagem, para inteligibilidade do texto. O retrato psicológico das
personagens não era, aliás, uma tarefa muito árdua, pois na convicção ainda
iluminista de Scott, as pessoas ao longo das épocas históricas modificam o seu
aspecto exterior, enquanto as suas emoções básicas permanecem. Quanto ao resto,
o romancista deveria permanecer fiel à historiografia, criando assim um efeito
de autenticidade histórica muito mais profundo do que mera descrição verosímil
de ambientes, designada por cor local,
só por si insuficiente para ressuscitar uma época histórica.
Adoptando
o pensamento de Vanoosthuyse, se um romance histórico procura ser mais
substantivo ou mais adjectivo, isto é, ou mais romance ou mais histórico, então
o século XIX, na sua globalidade, preferiu manietar os caprichos de Calíope em
honra de Clio. Na tipologia dos romances históricos de Joseph Turner com base
no tratamento do passado histórico, os romances históricos oitocentistas são
ficções históricas documentadas, na medida em que a adaptação de material
histórico pretende ser fiel, para o que o romancista concorre documentando-se
sobre a época que vai retratar. Precisamente para poder fruir de uma maior
liberdade criativa, sem cair no perigo da infidelidade histórica, conjugado com
o propósito máximo de operar um acordar
poético de uma época transata, Scott escolhia para herói das suas
intrigas não uma personalidade histórica, que aparecia apenas em momentos-chave
da narrativa, mas um herói não referencial ou semi-histórico, geralmente
prosaico, representante de correntes sociais e de forças históricas, e não um
herói épico e maniqueisticamente concebido. O usufruto de maior liberdade criadora
sem consequências para a verdade
histórica, terá pesado na opção scottiana pelo medievalismo». In Cristina
Costa Vieira, Viagem pelo Universo Feminino de ‘A Esmeralda Partida’ de Fernando Campos: o romance histórico como
ponto de fuga, Bolseira do programa Praxis XXI, Dissertação para a
obtenção do grau de Mestre em Estudos Portugueses e Brasileiros, Faculdade de
Letras da Universidade do Porto, 2000.
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