domingo, 14 de junho de 2015

Os Teatros de Lisboa. Júlio C. Machado. Ilustrações de Bordalo Pinheiro. «Sim, senhor. Elle é o dono da estallagem, bem conhecida até nos romances e nos melodramas, chamada a Tête-noire! Ah! A Téte-noire! Já percebo! Já percebe? Já percebo. Quer-me para symbolo!...»

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NOTA: De acordo com o original

«(…) Então, o chapelleiro deixou cair de seus lábios, com uma suavidade ideal, como se fosse mel, como se fora o puro hymeto, estas palavras: É para o actor Santos. O povo recuou. O meu amigo e eu, encostando-nos de novo um ao outro, e tomando a respiração, as res pirações, para lograrmos força digna do assumpto, perguntámos áquelle honrado industrial (estylo jornalistico): Para o actor Santos... Mas para quê? Para levar para o Porto! Para usar. Para trazer na cabeça. Para ser o seu chapéu! O seu chapéu!... E as vozes do povo ao longe, repercutiam em écco: O seu chapéu!!! Teem quasi sempre os artistas de excepcional vocação o seu tic de originalidade. Fallou-se sempre em França das gollas de Frederic Lemaitre e das gravatas de Lafont; porque deixaríamos de fallar do chapéu de Santos? É um typo. Um verdadeiro typo meridional, ardente, que convém para theatro. Grandes olhos, grande franzir de sobrancelhas, encrespando-as como Júpiter e abalando o mundo. Nariz largo e expressivo: tez bronzeada...
As ladies, quando elle esteve em Inglaterra, perguntavam sensivelmente desmaiadas o que significava aquelle typo… No theatro até os banqueiros o examinavam, e os porteiros deitavam-lhe o occulo… Foi de uma vez tirar o retrato a um photographo, e d'alli em diante viu-se grego com o artista, porque o homem tinha tanta venda aos retratos do moço, que o queria escripturar, não para o ver representar, mas para lhe tirar clichés! Em Paris deu-se com elle igual caso memorando. Deixára ficar o retrato n'um photographo (andava sempre a tirar retratos em successivas edições, que se esgotavam rapidamente, como dizem os editores nas folhas publicas) e estivera seis dias sem o ir buscar. Ao setimo dia foi o photographo procurl-o: Meu senhor... Viva!
O sr. é o cavalheiro que ha seis dias foi a minha casa tirar o seu retrato... Exactamente. E que não voltou? E que não voltou; sou eu. Faz empenho no seu retrato? Como, se faço empenho? Se o estima, se o deseja, se sempre quer ficar com elle? De certo. Por ter muito que fazer é que não fui lá estes dias. É porque, proseguiu o photographo n’um tom de embaraço, ha alguém que deseja vivamente compral-o... Ah! As mulheres! exclamou Santos, desdenhoso, e enfastiado. Estou farto de me deixar amar, sr. photographo, é preciso pôr ponto n'isto! D'esta vez não é mulher. Não é mulher?! Não, senhor. É homem?!!! É estallajadeiro. Ah! Isso é outra coisa! Mas, em todo o caso, que empenho pode ter de me possuir em effigie um honesto locandeiro, locandeiro, digâmos, que nem me conhece? Deseja pol-o na parede, do lado da rua..., por cima da porta... Que diacho...?
Sim, senhor. Elle é o dono da estallagem, bem conhecida até nos romances e nos melodramas, chamada a Tête-noire! Ah! A Téte-noire! Já percebo! Já percebe? Já percebo. Quer-me para symbolo!... Santos, emquanto estava na edade das aspirações, do culto pelo bello, da nobre ambição, que constitue os dotes de enthusiasmo e de fé sem os quaes nenhuma alma de artista ousa atrever-se aos voos do génio, foi um mancebo feliz. Seguia a sua vocação, ia atraz da sua estrella, conquistava o bem a que aspirava, sem preoccupações, sem inimisades, sem as invejas e os despeitos que o tempo levanta sempre de algum lado a perseguirem quem tiver talento.
Era um actor de bons dotes, imaginoso, quente, audaz. Assim o era e assim lho diziam. De uma occasião em diante principiaram a dizer-lhe mais alguma coisa: que era um actor sublime. Isso pesou-lhe. Ha poucas coisas tão incommodas como um homem achar-se de um dia para outro armado em divindade. O sublime deve ser sempre uma aspiração; nunca um emprego. Em que se emprega o senhor? Em ser sublime. É mau. Diz um provérbio árabe: Deus te defenda de realisares o teu ideal. Grande e triste verdade. Santos entristeceu, desde que realisou o seu ideal. Chegar a ter todas as immunidades, todos os direitos; ser o grande sacerdote, o pontífice theatral do verbo novo; não poder enganar-se, nem agradecer os conselhos dos seres secundários que gravitem no espaço inferior; não ser elle que mude de systema, serem as coisas que mudem em redor d' elle; tornar-se para elle a critica um attentado, e a opposição um crime; infallivel, impeccavel, infinitamente perfeito, Messias do que se aprende de cor, cercado de jornaes a tocarem trombeta e a dizerem d'elle todos os dias o que não dizem uma vez por anno de Garrett nem de Herculano...
É um encargo, e uma semsaboria. Se elle fosse um piegas, tinha ficado contentissimo; mas ao contrario, data d'então uma indiferença altiva e melancholica, um desdém e desapego a tudo. Natureza de artista, que a tem mais que nenhum em Portugal, quiz ainda fundar como que uma arte nova. O que resta d'essas ambições? Tentativas, que teem a marca dos esforços e dos desvios de uma individualidade, que foi servir de modelo absoluto para o gosto, para a dicção, para a forma, e que, se não poude conseguir fazer artistas, fez uma aluvião de exemplares de si próprio em ponto pequeno, um rancho de santinhos, que, á falta do talento de Santos, aspiram a ter a volubilidade da sua declamação e a grandiosidade dos colletes d'elle. Não seria fácil indicar por um só termo que marque um género, uma especialidade, um temperamento, uma physionomia, a indole característica d’este artista. Já vão a afastar-se d'elle os annos de Cherubim, e entretanto vêmol-o muitas vezes ingénuo e namorado a dar idéa pelo sentimento, pela sinceridade, pelo enthusiasmo, d'essa edade da vida que escalda o sangue e o coração». In Júlio César Machado, Os Teatros de Lisboa, Ilustrações de Bordalo Pinheiro, Livraria Editora Mattos Moreira, 1874, PN 2796 L5M25, Library Mar 1968, University of Toronto.

Cortesia de LEMMoreira/1874/Bordalo Pinheiro/JDACT