domingo, 7 de junho de 2015

Pedro Nunes. Os Homens do Mar do seu Tempo. «Tal ideia, que assentava sem dúvida nos dois pequenos tratados de Nunes intitulados Em defensão da carta de marear e Sobre certas dúvidas da navegação (impressos em 1537 juntamente com o Tratado da Esfera)…»

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Pedro Nunes e os homens do mar do seu tempo
«Tornou-se desde há muito corrente a afirmação de que o matemático Pedro Nunes, cosmógrafo de João III desde 1529 e cosmógrafo-mor do reino a partir de 1547, desempenhou um papel de grande relevo no aperfeiçoamento da arte náutica portuguesa da sua época. Tal ideia, que assentava sem dúvida nos dois pequenos tratados de Nunes intitulados Em defensão da carta de marear e Sobre certas dúvidas da navegação (impressos em 1537 juntamente com o Tratado da Esfera), veio há quase uma quarentena de anos a reforçar-se com a divulgação de um outro texto noniano, até então desconhecido, o opúsculo para que foi oportunamente encontrado o título, com que corre, de Defensão do tratado da rumação do globo para a arte de navegar. O manuscrito deste trabalho do matemático andou desencaminhado em arquivos italianos, por culpa de um cosmógrafo-mor do século XVII, Luís Serrão Pimentel, que o ofereceu ao grão-duque de Toscana, Cosmo de Medicis, quando em 1669 este passou por Portugal numa curta visita de aproximadamente dois meses; a primeira folha do manuscrito, que Giacinto Manuppella desencantou na Biblioteca Nacional de Florença, atesta tal procedência, pois ostenta a seguinte dedicatória de Pimentel: Serenissimo Senhor Cosmo, Terceiro Grande Duque de Toscana, este manuscrito do insigne Petro Nonio Salaciense, offerece, dedica e consagra a Vossa Alteza Serenissima o Engenheiro Mor e Cosmographo Mor dos Reynos e Senhorios de Portugal. Seu humilíssimo servo Luiz Serrão Pimentel; aquele professor e lusófilo italiano logo fez chegar cópia do precioso achado à mão de Joaquim Carvalho, que era então activo membro da comissão da Academia das Ciências encarregada de publicar as Obras de Pedro Nunes, e o professor conimbricense apressou-se a editar o texto com uma erudita e útil introdução, no ano de 1952. Não vem a propósito proceder agora à análise desta obra de Pedro Nunes, trabalho que se guardará para outra publicação, por reclamar o desenvolvimento de cálculos que seriam aqui descabidos; bastará dizer que, como em outros trabalhos seus, Pedro Nunes baseia toda a exposição em considerações de carácter geométrico; ou seja, esquecendo o recurso à trigonometria (o que é incompreensível, pois chegou a anunciar um trabalho sobre tal matéria), que podia facilmente evitar-lhe alguns lapsos; e ainda informar que este escrito vem na sequência de ideias expostas num dos tratados de 1537, exactamente o primeiro dos acima citados. Sobre este último ponto não pode, aliás, haver quaisquer dúvidas. Com efeito, no introito da obra, o matemático dirige-se ao infante Luís (iá veremos mais de perto em que termos) e refere-se a críticas que num livro escrito por um bacharel não individualizado sobre o arrumar do globo tinham sido feitas ao que sobre isso escrevi na obra que dirigi a Vossa Alteza; e esta obra é, de facto, o tratado em defensão da carta de marear, que foi dirigido ao muito esclarecido e muito excelente príncipe o infante Luís.
No entanto, não é suficiente saber-se que Nunes escreveu sobre a astronomia náutica e sobre a cartografia para estarmos autorizados a afirmar que a sua interferência nas navegações portuguesas do século XVI foi altamente positiva; também se torna necessário apreciar o alcance prático dessas contribuições e o modo como elas foram encaradas pelos marinheiros do seu tempo. Quando, neste duplo sentido, procuramos inteirar-nos sobre a repercussão que tiveram as suas obras e as soluções que nelas propunha, verifica-se logo que o cosmógrafo-mor foi criticado pelo menos por um outro cosmógrafo e que a prioridade de algumas ideias que apresentou como inovadoras lhe foi disputada. Falemos disso um pouco. Ficou dito atrás que o opúsculo Defensão do tratado da rumação do globo para a arte de navegar é dedicado ao infante Luís, e que no primeiro parágrafo da introdução, dirigindo-se a este príncipe, o autor alude a umas críticas que haviam sido feitas ao Tratado em defensão da carta de marear. O autor desses reparos foi o bacharel Diogo Sá, que publicou em Paris, no ano de 1549, um texto latino, sob o título De Navigationi Libri Tres, em que é agressivo para com o cosmógrafo-mor; e sabemos ser dele que este se defende naquele escrito, porque quase no final da exposição Nunes volta ao assunto e escreve: Dizem mal de meus tratados aproveitando-se deles e usando muitas vezes de minhas próprias palavras, e querendo falar em tudo, danão tudo; ora, fora, de facto, Diogo Sá quem usara as próprias palavras de Nunes, colocando-as na boca da Matemática na parte do livro em que ela dialoga com a Filosofia, a quem cabe expor as ideias do autor do De Navigationi.
Nessa parte final, em que explicita com mais clareza os seus pontos de vista, Pedro Nunes mostra que estava bastante magoado com a crítica; declarando escrever com desgosto, pois se considerava no direito de esperar ser tratado com mais respeito, afirma, com certo orgulho, porque eu primeiramente nestas partes tratei a Cosmografia por modos científicos e engenhosos, onde não se sabia mais que buscar um lugar em Ptolomeu e ler por Pomponio Mela. Achei como se tomasse a altura do Sol a toda a hora do dia e outras coisas proveitosas para a navegação. Adiante veremos que outros contributos terá ele dado para a solução de problemas náuticos; anote-se aqui somente que não parece ter ido muito além de Ptolomeu, de quem traduzira o livro I da Cosmografia, com um extenso comentário, no Tratado da Esfera; quanto ao livro elementar de Pompónio Mela, se é certo que fora obra de referência muito usada por Duarte Pacheco Pereira, portanto anteriormente a Nunes, também é verdade que João de Castro ainda a ele recorre depois do magistério do cosmógrafo. Ao terminar as alusões aos seus méritos e aos trabalhos, em que se não esquece de incluir o ensino dos príncipes Luís, Henrique e Duarte, o cosmógrafo mostra-se desanimado com as críticas, e por isso declara: Tenho terminado por estarazâo, acabando de alimpar obras que escrevi, passar meus estudos à Filosofia e largar'lhes as Matemáticas, no estudo das quais perdi a saúde irremediavelmente». In Luís Albuquerque, As Navegações e a sua Projecção na Ciência e na Cultura, Gradiva, Colecção Construir o Passado, 1987.

Cortesia de Gradiva/JDACT