Um irmão mal sintonizado
«(…) Entre a possibilidade de uma chalaça ou de uma crítica escondida,
o infante Fernando sentiu-se desconfortável. Nem era porque o irmão fosse
desconcertante ou que tivesse sequer sentido de humor. Não, nada disso! A
sensibilidade da missão que o trazia ali é que o tornava inseguro. Por isso,
quis responder, mas a resposta não lhe saiu espontânea e não esteve para
rebuscar palavras que o atrapalhariam mais. Sem Duarte I ainda saber, o tema da
conversa, que Fernando quer rodear de toda a formalidade, vai no sentido de
propor a sua saída do reino em busca de glória e do pecúlio que parece não
conseguir gerar em Portugal. Sente-se mal aproveitado, quer sair do reino para
dar ao seu nome e à sua Casa a importância que em Portugal não obtém. Isto é o
que vai dizer ao rei, embora, por enquanto, lhe omita o verdadeiro motivo da
sua presença ali. Embaraçado, hirto, num plano inferior relativamente à posição
sentada do monarca, o infante Fernando comprime-se. Não era para menos. Ao
esconder o que não queria dizer, omitia a verdade, uma forma próxima da
mentira, coisa que se pensasse bem não faria, pois, nessa hora ou em qualquer
lugar, Deus estaria de olho nele.
Bom observador, o rei apercebe-se incomodado da descomposta figura do
infante, despertando nele um esforço maior para decifrar a mensagem para além
do que parece. Mau sinal, pensou o
rei, desconfiado. Duarte começava a preparar-se para qualquer eventualidade, mas
a questão que o irmão lhe pôs, quase uma provocação, apanhou-o desprevenido. O que sou eu?, pergunta feita de
súbito, desgarrada, impertinente. Contrariado, Duarte fixou o irmão, sem
ter na voz uma resposta acabada para lhe dar. O que sois vós, como?, pergunta retribuída com sinceridade.
O rei, afastado do que o irmão queria que ele soubesse responder-lhe,
entendia que ao devolver-lhe a pergunta invertia o constrangimento que esta lhe
causou, além de passar para Fernando a difícil tarefa de se
explicar. Senhor, ficai sabendo, que nunca no meu pensamento existirão palavras
espúrias que de algum modo vos façam sofrer, volveu Fernando, com uma dureza
pouco consentânea com o seu modo sensível. Ao revelar-vos as minhas intenções,
estou ciente da vossa compreensão para com o homem que se sente privilegiado
por ser vosso irmão, mas, diminuído pelas circunstâncias, também percebe que é
o mais infeliz dos príncipes.
- Antes de prosseguirdes, sabei já que a vossa conversa me contraria
avantajadamente. Se persistis em substituir no vosso discurso as palavras por
imagens, sabei que o meu coração se comprime a cada verbo que pronunciais. Sem
ter por enquanto uma solução à vista, Duarte, numa manobra que pretendia
fazer precipitar as palavras do irmão, disse-lhe: prossegui então, porque para
incompreensões já estou armado. Acusando o remoque, Fernando esperou algum
tempo para voltar a dirigir o olhar ao irmão, procurando com manifesta dificuldade
recompor-se do golpe recebido. As precedências tinham muito peso, e Fernando,
por maioria de razão, apagava-se sempre que tinha de se confrontar com os
irmãos mais velhos. Tinha razões para isso. O seu sentimento de inferioridade
revelava-se complexo por não ser capaz de vencer a barreira da menoridade, manifestações
que o levaram quase a claudicar perante a última tirada do irmão». In
Jorge Sousa Correia, O Mistério do Infante Santo, A Revelação dos Pecados da
Ínclita Geração, Clube do Autor, Lisboa, 2013, ISBN 978-989-724-067-6.
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