O Comércio do Invisível
«(…) Estes revoluteantes acontecimentos que tinham lugar no interior de
dona Leonor Teles eram porém inexistentes para quem apreciasse de fora a jovem
sobrinha de Guiomar Pacheco. Bem podia ela identificar com os olhos de dentro a
estranha criatura que aparecera a Tobias, que todos os que a observavam de nada
se apercebiam. Ninguém a notara até aí e não era agora que alguém se dignava
reparar nela. Tudo se passava em segredo, dentro da cortina de silêncio da sua
capa escura e mantilha. Tirando a ocasional observação que fizera ao cónego de
Braga a propósito do sinal de Caim, ou a expressão de pavor que deixara escapar
na capela do paço de Barcelos, e numa altura em que ela descia e subia já a
escada dos mundos sobrenaturais como se transitava simplesmente do patamar duma
barbacã para o alto dum torreão, ninguém ouvira dela uma palavra sobre a sua estranha
vivência interior. Deixara ainda, com teima, de comer carne, mas isso não
passava aos olhos dos adultos de braveza ou de falta de costumes. Santa Maria
val! Nunca nenhum viu tal cousa, exclamava com frequência a tia, Guiomar
Pacheco, quando percebia que a menina não filhava carne de animal e só trincava
frutas, folhas ou raízes. Isolara-se nos aposentos que os tios lhe haviam
destinado no paço de Barcelos, afastando do convívio todo o ser humano, com
excepção duma jovem aia, pouco mais velha do que ela, chamada Maria Peres, que
se ocupava do preparo e do arranjo de sua casa. Viera recomendada pelos Castros
galegos, que tinham ainda ligação de parentesco vago com o pai da donzela. Era
enfiada, pouco atraente, seca de corpo, lábios de pergaminho, nariz deformado,
mas levava na apreciação de dona Leonor Teles vantagem sobre todas as outras
aias que os tios lhe haviam apresentado. Era silenciosa. O silêncio, num mundo
em convulsão como o dela, sempre pronto à metamorfose, era o alicerce da sua experiência;
a tagarelice, tão vulgar naquele género de meninas, era ao invés a sua
distracção. Demais, era a Peres muito dotada para o apresto doméstico. A casa
de dona Leonor Teles, apesar da ausência de pessoal, não perdia em relação à da
irmã, que se distinguia por alfenim, ou à da prima, vistosa mas perdulária. Tinha
asseio irrepreensível e a formosura dos seus adornos abalava os sentidos mais
que qualquer outra. Mas acima de tudo, Maria Peres, fosse pelo jeito, fosse
pelo apagamento, não afugentava a subtil exalação odorífera que fora a grande
revelação da vida de dona Leonor Teles e que tão esquiva se mostrava ao
contacto humano.
Guiomar Pacheco, quando se apercebeu daquele isolamento, não estranhou.
Há muito que ambientara a alma à natureza furtiva e singular da sobrinha. O
facto da sobrinha não filhar carne para comer fazia dela um ser separado da
comunidade civil. Que outro se podia aguardar de ti, menina? És bicho de além
mais que senhora de prol. A tua senda está mais numa cela de mosteiro que em
torre de paço. E tanto insistia que um dia levou a sobrinha a Braga a visitar
as agostinhas de Braga. Dona Leonor Teles, embrulhada nos panos da capelina, não
deu sequer pelo lugar, a que mais tarde, em situação reforçada, regressou. Assim
como assim, a tia gabava-lhe a limpeza, o gosto dos bordados e a marca dos
vários enfeites coloridos que aformoseavam a moradia. E guardava por ela, quando
a arredava da comunidade, um veio de respeito, que mais tinha a ver com a
discrição que com a singularidade. Dona Leonor Teles não ligava ao assunto das
monjas, porque a única cela que conhecia era a que tinha dentro de si. Era de
mais bravia para se poder adequar à rígida formação duma casa de religiosas». In
António Cândido Franco, Vida Ignorada de Leonor Teles, Edições Ésquilo, Lisboa,
2009, ISBN 978-989-8092-59-5.
Cortesia de Ésquilo/JDACT