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Que se seja levado a falar da mulher ofendida por um tempo que a atrofia e
degenera não será certamente pecado do escritor. Mas quando considera apartados
os problemas, atribuindo-lhes explicações autónomas e particulares que, por isso,
os não resolvem, então o escritor cria heroínas-mito e incorre em grave culpa.
Só um conto da presente colectânea. Week
End, escrito em Setembro de 49, se pode relacionar de perto com uma
história de triângulo. Incluo-o aqui
unicamente por ter julgado que nele ultrapassara os moldes clássicos do tema e
aquilo que, quando da sua publicação na antologia Meridianos do Porto, alguns amigos classificaram como pouco mais do
que uma história de magazine. Ainda hoje o não entendo assim e, embora ciente
de que não tenha conseguido revesti-lo com a clareza do ambiente que lhe
determina e está para além da acção, apresenta-o com muito poucas alterações da
versão primitiva.
Isto,
volto a insistir, porque suponho não ter alienado no dito canto quaisquer factos
que lhe dessem mais realidade, sem que, evidentemente, por outro lado fizessem
perigar a própria realidade literária. E a alienação, o menosprezo ou a ignorância
de qualquer dos dois valores efectivos da vida são, a meu ver, o pecado comum
de que enfermam na generalidade as histórias
triangulares. Servindo-me das palavras dum poeta, direi que esses valores
são o Leito e a Banca, realidades do homem que lhe povoam os sonhos mais
luminosos, são uma só causa e um mesmo objectivo e, pois que vivem solidárias,
confundem-se em toda a sua permanência. De sorte que defendê-las se tornou a
grande razão da vida: Alterando-as nas leis que as regem, alterados serão os
ritos, a geografia do sentimento, as convenções bíblicas que pesam sobre o
Amor.
Só
assim a mulher dos três K, impura
de há tantos séculos, a que traz no seio a inibição do pecado original ou a
majestosa frieza da esterilidade com que os poetas a coroaram, só assim ela vai
adquirindo grandeza de maravilha. Forja a sua luta na luta do companheiro e
surge já não estranha mas enriquecida de liberdade, amiga inseparável dos dias
e das noites, apta a dar filhos de boa vontade e com uma nova alegria. Assim
defenderá como suas e terá o justo lugar entre estas realidades do Leito e da
Banca sem descurar de qualquer delas. Diminuir uma ou outra seria desautorizar-se
e ao homem; e um homem sem autoridade é incapaz de tudo. Até de amar.
Julguei
necessário anteceder as histórias de amor com estas palavras por demais
extensas e, para, muitos, sem dúvida desnecessárias, de evidentes que são.
Neste caso, tanto melhor. Regozijo-me por sabê-las presentes e não olvidadas,
como em tão larga medida o vem provando o dia-a-dia que vivemos. De qualquer
maneira, porém, resta-me o esclarecimento de que as não escrevi para justificar
as cinco histórias que se seguem, dado que me parece muito mal ir o autor que
necessite de explicar uma obra que só os factos narrados podem e devem definir.
Limito-me, quando muito, a observar que lhes chamei de amor por estar neste ponto a matriz em que julguei ver fundidas
certas manifestações específicas do homem, capazes (perdoem-me os poetas ofélicos)
de o definir na época ou a época, através dele». In José Cardoso Pires, Histórias de Amor, colecção Os
Livros das Três Abelhas, Editorial Gleba, Lisboa, 1952, Arquivo Nacional da
Torre do Tombo.
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