«Entre os vários navegadores que serviram no tempo do infante Henrique
salientou-se, sem dúvida, Antão Gonçalves; pelo menos o cronista Azurara
presta-lhe grande atenção, citando-o com muita frequência, para o acompanhar de
perto nas suas aventuras pela costa de África. Por isso o escolhemos para
figurar neste livro, tomando-o como modelo do navegador típico do seu tempo,
embora, e porventura, Antão Gonçalves tivesse sido dos mais insistentes
nas suas tentativas exploratórias e comerciais. Era ainda muito jovem homem assaz de nova idade, diz Azurara,
mas já desempenhava o cargo de guarda-roupa do Infante, quando este, em 1441, estando o país em sossego (esta
alusão tem em vista a primeira grande crise na regência do Reino,
evidentemente), lhe entregou a capitania de um navio pequeno com fins meramente comerciais: com efeito, Gonçalves
deveria ir carregar peles e óleo de lobos-marinhos, a lugares já bem conhecidos
da costa africana; explica o cronista que, para lhe não dar uma incumbência
mais honrosa, o príncipe teve em atenção a sua pouca idade. Antão Gonçalves é
que se deve ter sentido por isso ferido no seu orgulho; assim, não é de estranhar
que, depois de ter carregado a sua embarcação com a mercadoria que lhe fora
encomendada, chamasse os seus vinte e um companheiros (as tripulações das caravelas
deviam oscilar então entre vinte e trinta homens) e, ao que parece, com o apoio
do seu amigo Afonso Guterres, propôs-lhes que levassem a acção mais longe do
que lhes fora expressamente indicado; e isto por ser vergonhoso (considerava
ele) regressar com tão pequeno serviço.
Que visava a proposta de Antão
Gonçalves? Não é necessário imaginá-lo, porque o cronista
transcreve-lhe o discurso e este declara-o directamente: o que formoso acontecimento seria, nós que viemos a esta terra para levar
carga de tão fraca mercadoria, acertarmos agora em nossa dita de levar os
primeiros cativos até a presença do nosso príncipe! O plano era o de um
assalto em terra, pela calada da noite, de uns dez homens entre os mais dispostos para isso, com o intuito
de apanharem algum pequeno grupo desprevenido e aprisionar pelo menos um
azenegue; proposta que foi aceite sem dificuldade pelos seus companheiros. A
acção veio a ter lugar na noite imediata, os dez aventureiros saíram em terra e
internaram-se até umas três léguas da costa, isto é, até encontrarem trilhos de
homens, que tinham deixado um rasto em sentido oposto ao daquele em que eles
seguiam. Porque estavam cansados e sequiosos, Gonçalves propôs o regresso pela
linha marcada pelos azenegues, com a esperança de encontrar algum grupo isolado
sobre o qual facilmente fizessem presas; o que foi aceite. No caminho toparam,
na verdade, um mouro que seguia só em
um camelo e foi capturado, apesar de se ter defendido com as suas azagaias;
rendeu-se.
Alguns dos navegadores que se distinguiram nesta primeira fase dos descobrimentos
foram armados cavaleiros, numa clara demonstração da sua origem plebeia. Nuno
Tristão, já cavaleiro, como conta Azurara, armou Antão Gonçalves, gesto
que foi o primeiro que teve lugar em
aquelas partes. Das viagens de Antão Gonçalves, típico
navegador-comerciante, ao Rio do Ouro, resultaram duas consequências
importantes para a evolução do processo de expansão: o comércio de escravos e o
aparecimento do primeiro ouro. Quando Guterres o feriu com um dardo; adiante
viram sobre um outeiro o grupo a que o mouro
aprisionado pertencia e perseguiram-no; mas acabaram por considerar mais
prudente não o acometer, por estar a cair o dia, por se encontrarem cansados e
o número dos mouros a atacar ser elevado; apanharam, no entanto, uma moura negra, que era serva de algum
daqueles que se encontravam no outeiro, a captura foi feita por decisão de
Antão Gonçalves, mas contra a vontade de outros, que teriam preferido tê-la
deixado livre. Esta acção, que parece de pequena monta, foi então considerada
de grande valor; e como entretanto chegara àquele lugar Nuno Tristão, todos os
companheiros de Antão Gonçalves quiseram que ele fosse armado cavaleiro, o que,
na verdade, foi feito, como se alude ao tratarmos da biografia de Nuno Tristão.
Também no trecho dedicado a Tristão é dito como o Infante recebeu com
satisfação tanto Antão Gonçalves como o navegador que o armara cavaleiro, não
só pelo lucro que tirava da venda dos cativos, mas pela santa intenção que o príncipe tinha de salvar almas perdidas. Antão Gonçalves estava, porém, destinado a ser
pioneiro em acções fundamentais que os Portugueses fizeram na costa ocidental
africana; além de ter sido ele a fazer os primeiros cativos, como acaba de ser
dito, logo no ano imediato ao dessa viagem foi fazer o primeiro resgate como se
lê no título do capítulo XVI da Crónica.
Que resgate? A simples
troca do mouro honrado, que viera na
leva dos dois navios, por uns dez mouros
negros, que por ele seriam dados em troca. Antão Gonçalves foi quem propôs
o negócio a Henrique, baseando-se em três ordens de razões: 1.ª, era melhor tentar salvar dez almas
do que três (ao nobre mouro juntavam-se, na troca, dois moços), visto que,
embora estes fossem trocados por negros, mesmo assim estes tinham alma com os outros; 2.ª,
que através desses negros obtidos na permuta poderia eventualmente saber da terra muito mais longe; 3.ª, que ele, Antão Gonçalves, teria maneira, quando no trato falasse, de
se trabalhar de saber as mais novas que pudesse. Assentiu o príncipe,
fazendo notar ao peticionário que, tendo por bom serviço as informações que ele
se propunha recolher, não somente daquela terra desejava de haver sabedoria,
mas ainda das Índias, e da terra do Preste João, se ser pudesse. E de
esclarecer que o Preste João, mais tarde reconhecido como imperador da Etiópia
ou Abissínia, (como se refere ao tratar do padre Francisco Álvares e de Pêro da
Covilhã), era ainda, na primeira metade do século XV uma personagem mítica. A
partir de uma carta apócrifa, que lhe fora atribuída e divagara pela Europa nos
últimos séculos da Idade Média, admitia-se que se tratava de um rei muito
poderoso e riquíssimo, cujos territórios centrais se situavam para além do Nilo
portanto, em áreas ainda consideradas por
esse tempo como parte da Ásia, mas com domínio que cobriam quase toda a África;
alguma cartografia dos séculos XIV a XV situaria a Etiópia em vários lugares
africanos; e em especial uma Etiópia arenosa na costa ocidental da Africa e a
Etiópia Meridional na África do Sul! Deste e de outros passos da Crónica de Azurara
em que a relação com os habitantes da costa de África foi preocupação dominante
dos primeiros navegadores. Comunicação nem sempre facilitada pela diferença já
estabelecida entre os dominadores maometanos e a restante população indígena». In
Luís de Albuquerque, Navegadores, Viajantes, Aventureiros Portugueses, Séculos
XV e XVI, Antão Gonçalves, Editorial Caminho, Lisboa, 1987.
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