A
Gruta
«(…) No dia seguinte, lamentavam as
suas indiscrições nocturnas e murmuravam que os anciãos dos clãs não deviam ter
autorizado a minha investigação, que os brancos não tinham nada que se meter nos
assuntos deles e que eu devia deixar de tentar penetrar na capa de segredo que envolvia
os seus ritos religiosos. Outros tentavam que eu me fosse embora, assustado com
as histórias horríveis do que tinha acontecido a anteriores gerações de investigadores
que também tinham ido longe de mais por caminhos proibidos. Um deles tinha sido
circuncidado à força, depois de ter ousado entrar em Dumghe, a montanha sagrada
da tribo. Outro tinha andado a vaguear muito perto de uma gruta sagrada no sopé
de Dumghe e tinha sido ferido com uma azagaia tradicional e muito espancado. Escapara
por pouco com vida. Quando as minhas esperanças de encontrar o indício essencial
no quebra-cabeças da identidade deles começaram a morrer, o mesmo aconteceu com
as colheitas nos campos à volta da aldeia. Durante meses, não chovera. Havia apenas
algum líquido espesso e lamacento no fundo dos furos hertzianos. Todas as manhãs,
as mulheres acartavam água em velhos bidões enferrujados de petróleo
equilibrados em cima da cabeça. Quando acabasse aquela, não restaria nada para beber.
Excepto cerveja, da loja, para as pessoas com dinheiro. E não havia muita.
Naquela manhã, cedo, antes de o Sol
nascer, o chefe tinha convocado uma cerimónia da chuva. O mensageiro do chefe chegara
exactamente quando a casa começava a mexer. A fogueira de cozinhar estava a ser
acendida e estava a aquecer-se água para chá e para lavagens, que me era trazida
todas as manhãs à cubata pela filha do meu gentil anfitrião, Sevias. O mensageiro
disse a Sevias que era solicitada a sua presença nessa noite. Era um último e desesperado
lance de dados. A seca já durava há tanto tempo que as correntes que outrora traziam
vida e um ocasional peixe à aldeia tinham desaparecido completamente. Agora,
pareciam caminhos de cabras cobertos com uma grossa camada de pó fino. Sem
água, em breve a vida na aldeia tornar-se-ia impossível. A tribo teria de se mudar
para outro sítio. Mas para onde? A seca abrangia a terra toda. Ao fim da tarde,
os anciãos e os notáveis concentraram-se na grande cubata do chefe, no centro
do seu kraal, o grupo de cubatas que formava a sua propriedade. Tinham sido
convidados para beber chibuku, cerveja de milho fabricada em casa, com a
consistência de papa de flocos de aveia, dançar a noite inteira e pedir chuva aos
antepassados. Isto era a África mais profunda.
Sevias
convidou-me para o acompanhar. Enquanto caminhávamos pela terra ressequida, falou-me
dos grandes rebanhos que outrora possuíra, das árvores que se vergavam ao peso
dos frutos, do milho que costumava ser tão grande como abóboras. Fomos dos primeiros
convidados a chegar. Sentei-me ao lado de Sevias num banco de adobe que existia
a toda a volta da cubata e observámos com grande interesse os preparativos para
a festa ancestral. Nunca imaginara que me fosse permitido observar uma coisa
tão próxima como esta, sem dúvida, estava do âmago do culto deles. Eu tinha uma
máquina fotográfica, um gravador e um bloco de apontamentos. Estava bastante
certo de que aquela noite me forneceria material para, pelo menos, um artigo académico
dos que produzem forte impressão». In Tudor Parfitt, A Arca Perdida da Aliança,
2006, Livros d’Hoje, Publicações dom Quixote, 2008, ISBN 978-972-203-541-5.
Colecção de PdomQuixote/JDACT