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O Algarismo e o Número
«(…) Ora, ora, com que
então querias escapar-te? Arnal Rendol tinha surpreendido Teresa. Pai, pai, a menina
abraçou-se ao seu progenitor. Viste a quantidade de luz? Sim, claro que vejo, minha
pequena. Mas para além de muita luz, hoje também há muito frio. Vamos para casa,
não quero que adoeças. Arnal pôs a filha no chão e regressaram ambos a casa enquanto
a criada continuava a expirar baforadas de alento que desenhavam nuvens de vapor
quente na gélida manhã burgalesa. A cor azul do céu é como a que tu pintas nas abóbadas
das igrejas. Porque é que o céu é azul, pai?, perguntou Teresa, enquanto Arnal avivava
o lume na lareira da cozinha, acrescentando umas achas às brasas do borralho. Porque
é a cor mais bonita, minha filha, por isso é também a mais difícil de conseguir.
Então, Deus é azul?, perguntou Teresa. Não, Deus é como o homem. Ele quis que fôssemos
perfeitos e deu-nos a liberdade de construir, esse livre-arbítrio proporcionou que
alguns homens se tenham extraviado do bom caminho.
E as mulheres também são como Deus? O sábio Aristóteles,
um filósofo que viveu no país da Grécia há muitos anos, dizia que a mulher é um
homem imperfeito... Bem, eu não acredito nisso, mas há muitos homens que dizem que
é assim. Na terra de onde a tua mãe e eu viemos, homens e mulheres
acreditávamos que éramos bons e iguais, chamávamo-nos os perfeitos, mas outros
homens consideraram que estava mal e perseguiram-nos por isso. Eram homens maus?
Sim., muito maus. Diziam que a morte era a única coisa que merecíamos, por isso
tivemos que sair de lá. Mas Deus não vos defendeu? Sim, fê-lo; protegeu-nos e conseguiu
que a tua mãe e eu fugíssemos de lá. Depois nasceste tu... E a minha mãe? Morreu
para te dar a vida, por isso deves gostar sempre dela. A mãe era azul? Sim, meu
amor, a mãe era azul.
Afonso IX de Leão fracassou ao tentar
conquistar a cidade de Cáceres, uma fortaleza muçulmana na fronteira sul do reino,
protegida por sólidas muralhas que foram cercadas inutilmente durante vários meses.
Ferido no seu orgulho, o aguerrido monarca leonês voltou a sua ira contra Castela
e, aproveitando o fim da trégua acordada em finais do ano anterior, atacou o
reino do filho. Mas de novo os castelhanos responderam com a mesma contundência
que na última ocasião e não coube outro remédio ao rei de Leão do que acordar uma
nova paz honrosa.
Durante o Inverno, dona Berenguela tramara
toda uma rede de adesões em torno da figura do filho. O jovem mas decidido rei Fernando
era um soberano simpático, de carácter enérgico e valente, temente a Deus e de vontade
firme. Herdara a coragem e a resolução de ânimo do pai, o rei Afonso de Leão, com
quem vivera até pouco antes de ser coroado rei de Castela, e o ânimo e a inteligência
da mãe, Berenguela, e, através dela, a energia transbordante de Henrique II de Inglaterra
e de Leonor de Aquitânia, os seus afamados bisavós.
Consciente de que Castela não claudicaria ante
o exército leonês, de que Fernando se tinha sentado como soberano de Castela e contava
com o apoio da grande maioria dos concelhos, universidades e nobres do reino, Afonso
de Leão optou por acordar uma paz definitiva com o filho e a antiga esposa. O
tratado de paz foi assinado na vila de Toro na colegiada construída segundo o velho
estilo ao romano, no dia 26 de Agosto de 1218. Berenguela e Fernando tiveram
de entregar ao leonês onze mil maravedis. A paz estava a sair cara, mas a bonança
económica do reino permitia aos castelhanos comprar a estabilidade necessária para
crescer como nação naqueles tempos tão incertos.
Dona Berenguela não
se separara um único instante do seu filho Fernando desde que conseguira
convertê-lo em soberano de Castela. A rainha-mãe tinha o firme carácter da sua avó,
Leonor de Aquitânia, e tinha-se tornado tão necessária ao filho que participava
em todas as cúrias, para as quais o rei convidava os mais notáveis homens do reino
para o assessorarem nos assuntos relativos ao governo dos seus Estados. Berenguela
ocupava um dos lugares principais na cúria régia e as suas opiniões eram sempre
respeitadas e tidas em conta por todos». In José Luís Corral, O Número de
Deus, 2004, O Segredo das Catedrais Góticas, Planeta Editora, Lisboa, 2006,
ISBN 972-731-185-7.
Cortesia de Planeta Editora/JDACT