A
Gruta
«(…) O chefe estava a morrer.
Toda a gente o dizia. Tinha um ar cinzento e doente. Fez-me um gesto indicando
que devia ir para ao pé dele. Pegou-me na mão e sussurrou-me ao ouvido: os
antepassados vieram de Israel. Vieram de Senna. Estão aqui connosco.
Adeus, Mushavi. Talvez nos vejamos em Senna. Senna era a cidade perdida
de onde tinham vindo e também era o 1oca1 para onde esperavam ir quando
morressem. O seu rosto, iluminado pela luz bruxuleante das velas, estava
enrugado com os traços da idade e da doença: os olhos estavam tapados por
papadas mosqueadas de carne ligeiramente corada. Olhou para mim e depois
indicou-me que devia levantar-me e deixá-lo. Triste e perplexo com as suas palavras,
voltei para o banco, para o meu bloco de apontamentos, para a máquina
fotográfica, e para o gravador. Estava ali na aldeia há tanto tempo que
começava a sentir-me em casa, um deles. Tinha bebido uma boa quantidade da
cerveja chibuku deles. Após os primeiros tragos, torna-se mais ou menos
aceitáve1 e, passado um bocado, absolutamente aceitável. Achei que não era
altura para me sentar a um canto a tomar apontamentos e a gravar música
lemba. Havia coisas mais importantes a fazer. Tirei a camisa a fim de, pensava
eu, me misturar com os homens e as mulheres seminus cujas mórbidas sombras
andavam a saltar descontroladamente pelas paredes e que estavam a cair numa
espécie de transe a toda a minha volta. A mulher mais velha do chefe atravessou
a cubata, inclinou-se para mim com os seios descaídos e enrugados a roçarem-me
no ombro, e sussurrou alguma coisa incompreensível em xona, a língua da tribo
xona que predominava e no seio da qual viviam os lembas do Zimbabwe.
Comecei a dançar ao ritmo repetitivo
dos tambores. Uma das mulheres mais jovens do chefe estava a dançar com os
seios nus à minha frente, balançando-se de modo que evidenciava os efeitos do
álcool, suplicando aos antepassados, percorrendo os seios com as mãos e,
depois, a barriga e as pernas. As tamborileiras aceleravam o ritmo dos
tambores. Outra mulher em transe, com os olhos inflamados, libertou-se das roupas
e foi para o centro da cubata. Os homens puseram-se à sua volta a admirar-lhe o
corpo magro e os seios cheios, incitando-a a continuar. Ela está a falar com os
antepassados, disse-me Sevias ao ouvido. Em breve eles responderão. Quando se
ouvirem as vozes deles é melhor ir-se embora.
Cerca da meia-noite o ambiente
mudou. Imaginei que era chegada a hora dos feitiços do culto e das orações secretas.
Essas eram as coisas bem guardadas. Esses eram os códigos orais que governavam as
suas vidas e que, sem dúvida, detinham os indícios do seu passado de que eu
andava à procura. Esses códigos e feitiços eram, para mim, o cerne da questão.
Era nisso que queria participar. Era para isso que ali tinha ido. Os meus
braços ergueram-se; o meu rosto virou-se para o tecto de colmo. O suor corria-me
em bagas. Tive uma grande sensação de excitação. Tinha sido aceite. Era um deles.
Os antepassados iam descer e eu estaria lá para observar o que vinha a seguir.
Nunca ninguém de fora tinha observado aquilo. Dentro da cabeça senti abrir-se
uma espécie de canal que parecia ser um canal de comunicação com os antepassados
israelitas da tribo.
Estava a rejubilar com a eficácia
da minha metodologia de investigação de cinco estrelas quando senti um punho bater-me
de lado no rosto. Era o punho da mulher mais velha e mais forte do chefe. Caí no
chão, em cima do corpo deitado e malcheiroso do maior bêbado de Mposi, uma espécie
de vagabundo chamado Klopas que eu já tinha encontrado e cheirado muitas vezes.
Durante alguns segundos, perdi a consciência. Fui levado para fora da cubata por
alguns dos homens e encostado ao lado da cubata do chefe. Eee..., aborreci a mulher
do chefe, disse eu. Lamento. Não lamentava nada. Sentia-me furioso.
Mushavi,
disse Sevias inclinando-se por cima de mim. Não aborreceste ninguém. Este golpe
foi apenas as boas-vjndas dos antepassados. Talvez também tenha sido um pequeno
aviso. Só um pequeno aviso. Se os antepassados não o quisessem aqui, não lhe teriam
dado um golpe ligeiro como este, tê-lo-iam desfeito em pedaços. Agora, tenho de
ir porque os antepassados estão a vir ter connosco. Os não iniciados têm de se ir
embora». In Tudor Parfitt, A Arca Perdida da Aliança, 2006, Livros d’Hoje,
Publicações dom Quixote, 2008, ISBN 978-972-203-541-5.
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