«(…) A primeira ficava na Pensilvânia:
no distrito de Willow com uma população de quatro mil habitantes. Uma povoação que
cresceu em fila ao longo da estrada, a partir de uma estalagem, quando o século
XIX se transformou em XX, rodeada por campos de milho e de tabaco. A estrada, que
seguia um rio para sueste ao longo de setenta quilómetros, acabava por chegar a
Filadélfia, mas aqui fora baptizada como Mifflin Avenue, por causa do primeiro governador
conflituoso de Keystone State. A cinco quilómetros para o outro lado ficava uma
cidade de tamanho médio, Alton, Alton, com as suas fábricas de tijolo enegrecido
metidas no meio das filas de casas, com os carris da ferrovia a cortar a baixa em
duas, o bairro das prostitutas, conhecido como Pussy Alley (alameda das passarinhas),
os bares de esquina com fachadas a imitar pedra, as salas de cinema com uma grandiosidade
pseudo-islâmica e os seus restaurantes barulhentos e sebosos. Antros de ladroagem,
chamava o pai dele aos restaurantes. O pai de Owen detestava comer fora; detestava
ser servido, sobretudo por homens, que lhe davam a sensação de serem mais dispendiosos
e mais intimidativos do que as empregadas; detestava a comida pesada dos restaurantes,
que por vezes vomitava mais tarde como sinal de desdém; detestava a sobremesa, o
imposto e a gorjeta. A mãe de Owen, sempre obesa, a não ser nas primeiras
memórias do filho, adorava comer bem e ficava ali quieta, amedrontada e ressentida,
enquanto o marido lhe estragava metodicamente o prazer, pelo menos, assim parecia
ao filho único do casal, que interpretava aquele drama conjugal de um ponto de
vista limitado: apesar de o seu cabelo ter o castanho baço e inofensivo do pai,
- um cabelo tão fino que se levantava das suas cabeças quando tiravam o chapéu ou
se sentavam perto de uma ventoinha, Owen tomava o partido da sua mãe de cabelos
arruivados. No entanto, o medo que o pai tinha de ficar sem dinheiro residia no
seu estômago e ficava lá a corroê-lo. Talvez não fosse por acaso que a migração
da sua vida o tivesse levado para nordeste, para uma região de solo pedregoso e
raso onde as pessoas têm relutância às despesas.
Na Pensilvânia, as pousadas de arenito,
sementes de povoações, algumas das quais floresciam e cresciam, enquanto outras
se transformavam num amontoado decrépito, estavam espaçadas em cerca de cinco
quilómetros, a distância que um homem conseguia percorrer numa hora ou que uma
parelha de cavalos conseguia fazer a puxar um atrelado num dia de Verão sem precisar
de beber água. A vida do campo ainda controlava o tempo. Os velhos faziam a sesta
a meio do dia. Os vizinhos da rua vendiam uns aos outros os espargos, feijões e
tomates criados nos seus quintais; e a Mifflin Avenue, com a sua encosta alta que
fazia a água da chuva correr para as valetas, ressoava de manhã com o bater lânguido
dos cascos dos cavalos que puxavam as carroças em direcção ao mercado dos lavradores,
a menos de um quilómetro de distância, ao fundo da estrada principal, a Alton Pike,
que tinha linhas de eléctrico ao meio. Na altura em que Owen nasceu, em 1933, e
foi trazido para Willow, para casa do seu avô, à falta de outra, Roosevelt era novo
no cargo e a povoação, assim chamada por causa de um enorme salgueiro antigo junto
à estalagem, com as raízes regadas pelo ribeiro que serpenteava em direcção a Filadélfia,
tinha sido incorporada como um distrito. Tinham nascido ruas secundárias,
paralelas à Mifflin Avenue, a 2nd Street e depois a 3rd e
a 4th, por uma encosta acima, por onde as crianças andavam de trenó no
Inverno, escorregando pela neve compacta, descendo velozmente pelos cruzamentos
barricados até a corrida acabar com uma explosão de faíscas sobre o tapete de
cinzas que o pessoal da câmara despejara à pazada de um camião. As faíscas, a neve
compacta, as árvores de Natal no interior das casas ao longo de todo o caminho até
à escola, tudo isto durava apenas alguns dias, a meio de um Inverno mortiço e húmido,
mas fornecia memórias que duravam o ano inteiro e que faziam o tempo andar para
a frente na eternidade virtual de uma criança.
O
tempo morno durava de Março a Outubro. Uma neblina assentava sobre Willow. O
pequeno quarto de Owen, com as suas paredes apaineladas e a pequena estante,
dava para umterreno baldio onde muitas vezes brincava com as outras crianças da
vizinhança durante uma hora depois do jantar, no Verão, num crepúsculo leitoso,
com a erva longa e áspera já a dar sementes. Basebol, escondidas, futebol: as raparigas
jogavam todas, dado que a vizinhança tinha mais raparigas do que rapazes. Uma
vez, na erva emaranhada do terreno, calcada e molhada de orvalho, porque era
Outono e a escola tinha começado novamente, Owen encontrou os seus óculos no estojo
castanho, desaparecidos alguns dias antes. Encontrou-os! Tinha-os procurado em todo
o lado, dentro de casa, e a sua mãe lastimara o problema que aquilo ia ser, porque
o pai teria de pagar um outro par para os substituir. Era um milagre, julgou o garoto
quando se baixou e pegou no estojo, molhado pelas noites e dias de espera paciente
até que ele o encontrasse. Lá dentro, sim, ali estavam os discos de aros dourados
que lhe apuravam a vista, as pequenas peças em forma de feijão que deixavam marcas
no seu nariz, as hastes curvas de metal que lhe magoavam as orelhas». In
John Updike, Pecados e Seduções, 2004, Civilização Editora, 2008, ISBN
978-972-262-676-7.
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