domingo, 29 de abril de 2018

Moll Flanders. Daniel Defoe. «… e por fim as moças ganharam dois instrumentos, isto é, um cravo e uma espineta (precedeu o cravo), e elas mesmas me ensinaram; quanto à dança…»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) Eu acabava de ser acolhida, como disse, por essa boa dama, quando a primeira senhora, isto é, a mulher do prefeito, mandou que as duas filhas cuidassem de mim, e outra família, que me conhecera quando eu era a daminha e tinha-me dado trabalho para fazer, também mandou buscar-me, depois da outra, de maneira que eu estava sendo muito requisitada, como podem ver, e além do mais se mostraram não pouco aborrecidas, principalmente a senhora prefeita, com o facto de sua amiga me ter tirado dela, como se expressou, porque, segundo dizia, eu era sua por direito, já que ela fora a primeira que havia prestado atenção em mim; a família que me tinha consigo não quis que eu a deixasse, e quanto a mim, seria muito bem-tratada com qualquer uma das outras e não poderia estar melhor do que estava. Ali permaneci até entre os dezassete e os dezoito anos, desfrutando de todas as oportunidades que se possam imaginar para minha educação; a senhora tinha em casa professores que ensinavam as filhas a dançar e a falar francês, e também a escrever nessa língua; havia também outros que lhes ensinavam música, e, como eu estava sempre junto das meninas, aprendi tão depressa quanto elas, e embora esses mestres não fossem contratados para me ensinar, eu aprendia por imitação e curiosidade, tudo que elas aprendiam por instrução e orientação; para resumir, aprendi a dançar e a falar francês tão bem quanto qualquer uma delas, e a cantar muito melhor, porque tinha melhor voz; não pude chegar a tocar o cravo e a espineta a contento, por não possuir um instrumento que fosse só meu para estudar, e só nos intervalos, quando os deixavam, o que era incerto, podia tocar os instrumentos que elas usavam; acabei aprendendo a tocá-los razoavelmente, e por fim as moças ganharam dois instrumentos, isto é, um cravo e uma espineta (precedeu o cravo), e elas mesmas me ensinaram; quanto à dança, era quase inevitável que me ajudassem com as danças campestres, porque sempre precisavam de mim para completar dois pares; por outro lado, estavam tão dispostas a ensinar-me tudo o que haviam aprendido quanto eu a aprender.
Assim, como disse anteriormente, tive todas as vantagens de uma educação que, de outra forma, só poderia ter recebido se fosse uma dama como aquelas jovens com quem vivia, e em certos aspectos eu levava vantagem sobre elas: ainda que tivessem tido melhor berço, os meus dons eram naturais, e toda a fortuna não lhes poderia dar outros iguais, em primeiro lugar, eu era, de aparência, muito mais bela do que qualquer uma delas; segundo, era mais bem-feita; e terceiro, cantava melhor, isto é, tinha melhor voz, e assim julgando, espero que me permitam dizer, não expresso o conceito que eu fazia de mim mesma, e sim a opinião de todos os que conheciam a família.
Além de tudo, eu tinha a vaidade comum do meu sexo, ou seja, sabendo ser vista como atraente ou, se preferirem, como verdadeira beldade, tinha a respeito de mim mesma opinião tão boa quanto a de qualquer pessoa e gostava especialmente de ouvir os elogios da boca alheia, o que ocorria com frequência e causava-me grande satisfação. Até aqui a minha história havia corrido sem maiores sobressaltos, e nesse período de minha vida não só todos sabiam que eu vivia com uma família magnífica, louvada e respeitada pelas suas virtudes, pela sobriedade e por muitas outras qualidades, como também era conhecida como uma jovem assaz judiciosa, modesta e virtuosa, e assim fora sempre; tampouco tivera algum dia oportunidade para pensar em nada que não fosse assim ou de saber o que significava a tentação do mal.
Aquilo que mais me envaidecia fez com que eu me perdesse, ou, em outras palavras, a vaidade foi a causa de minha perdição; a dona da casa em que eu vivia tinha dois filhos, jovens cavalheiros muito promissores e de conduta admirável, e foi a minha desdita estar bem com os dois, pois cada um deles se houve comigo de modo bastante diferente.
O mais velho, um cavalheiro folgazão que conhecia tanto a cidade quanto o campo e que, mesmo leviano o bastante para cometer más acções, era demasiado sensato para pagar caro demais pelos seus prazeres, armou aquela triste armadilha em que caem todas as mulheres, isto é, aproveitou todas as ocasiões para me dizer o quanto eu era linda, como dizia ele, agradável, de porte admirável e outras coisas desse teor; e obrou com extrema subtileza, como se dominasse a ciência de prender uma mulher na sua rede tão bem quanto aprisionava uma das suas perdizes quando ia à caça, pois urdia tudo de forma a dizer tais coisas às irmãs quando, embora eu não estivesse junto delas, ele sabia que eu não estava muito longe e com certeza o escutaria; as suas irmãs diziam baixinho, cale-se, irmão, que ela pode ouvir, está no quarto ao lado!, e ele interrompia o que vinha dizendo e baixava a voz, fingindo ignorar o facto, e admitia que havia errado; daí a pouco, como se se tivesse esquecido, falava de novo em voz alta, e eu, que me comprazia tanto em ouvir tais elogios, não perdia ocasião de escutá-lo». In Daniel Defoe, Moll Flanders, 1722, A vida Amorosa de Moll Flanders, Publicações Europa América, 1998, ISBN 978-972-104-443-2.

Cortesia de PEAmérica/JDACT