terça-feira, 17 de abril de 2018

Quatro Orações Camonianas. Aníbal Pinto Castro. «… dos fenómenos atmosféricos e marítimos, das artes bélicas, do rude linguajar de marinheiros, chatins e aventureiros, e até da interferência do português reinol com os idiomas alienígenas»

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Camões e a Língua Portuguesa
«(…) Essa cultura não o cegou a ponto de preferir o latim ao português como veículo de expressão poética, mas permitiu-lhe, seguindo aliás o conselho dos gramáticos seus contemporâneos, uma fecunda renovação linguística e estilística. Os dados reunidos por Carlos Eugénio Correia Silva (Paço d’Arcos), no Ensaio sobre os latinismos dos Lusíadas, são desse facto uma prova segura, enquanto não dispomos de estudo mais actualizado  (publicado em 1931 pela Imprensa da U. de Coimbra e reeditado em 1972, pela Imprensa Nacional Casa da Moeda). A juntar à matriz latina, eram-lhe fontes de generosa abundância os códigos retórico-estilísticos próprios do petrarquismo e do neoplatonismo, a Bíblia, os poetas antigos e contemporâneos, com que transformou e revitalizou o vocabulário poético à beira da exaustão nas páginas do Cancioneiro Geral, de Garcia de Resende.
Depois, fruto do exercício dos seus dons de observação, tão dentro do espírito português do Renascimento, o verbo poético camoniano enriquece-se com as linguagens encontradas no seu dia a dia de soldado da terra e do mar. A sua paleta estilística, que a poesia então era pintura!, apreende matizes novos pelo uso da terminologia náutica, da nomenclatura da fauna e da flora, da astronomia, dos fenómenos atmosféricos e marítimos, das artes bélicas, do rude linguajar de marinheiros, chatins e aventureiros, e até da interferência do português reinol com os idiomas alienígenas.
Foi porque Camões soube caldear os elementos de uma sólida cultura humanística com os ensinamentos de uma longa experiência, que a sua obra, fixando uma das mais altas criações do espírito europeu de Quinhentos, não perdeu as marcas de humanidade dramaticamente vivida. Por isso ela venceu o tempo e a sua influência, longe de ficar confinada ao nível de um estilo literário ou de um paradigma estético, específicos de uma época, perdurou como força de constante renovação a outros níveis da criação artística e da actividade linguística portuguesa subsequente.
Recolhendo a herança do saber linguístico anterior, e é curioso ver como conciliou uma invulgar criatividade idiomática com o consciente aproveitamento do arcaísmo com intenção estética, dos grandes movimentos culturais da sua época e da sua experiência ultramarina, o idiolecto camoniano oferece, no plano sincrónico, um modelo completo da realização da língua portuguesa na segunda metade de Quinhentos». In Aníbal Pinto Castro, Camões e a Língua Portuguesa, Quatro Orações Camonianas, Academia Portuguesa da História, Lisboa, 1980.

Cortesia de APHistória/JDACT