segunda-feira, 16 de abril de 2018

Confissões de uma Liberal. Maria F. Mónica. «Num momento em que a União Europeia está a braços com um país, o Irão, em vias de adoptar armas nucleares, será que não tem mais a fazer do que meter o nariz nos bolos tradicionais?»

jdact

A Europa e eu
«(…) Ao longo de dezenas de Natais, a minha sobremesa preferida foi o bolo-rei. Não tanto pelo paladar da massa, mas por ambicionar sentir na boca o embrulho de papel contendo o presente. Aos 8 anos, já sabia que o oiro das figuras, ursos, galos e patos, era falso, mas a descoberta não retirou um grama de prazer ao que sentia. Era como jogar a lotaria sem ter tido que comprar o bilhete. Como tudo o resto, o fascínio pelo bolo-rei foi diminuindo com a idade, mas, durante anos, continuei a esperar que me calhasse, não a fava, mas o brinquedo. Há dias, notei que este desaparecera. Até ler o Diário de Notícias, de 31 de Dezembro último, pensei que a culpa seria de um qualquer cozinheiro. Erro meu. O facto deve-se a uma norma da União Europeia, a qual terá entendido que os presentes do bolo-rei são nocivos à saúde, pelo que decidiram proibi-los. Apesar de atónito, o dono da Confeitaria Marquês de Pombal tentou explicar o gesto ao repórter: a medida seria destinada não só a evitar o risco de os presentes serem engolidos pelos consumidores, como, e mais importante, de os materiais usados poderem vir a deteriorar o bolo. Num momento em que a União Europeia está a braços com um país, o Irão, em vias de adoptar armas nucleares, será que não tem mais a fazer do que meter o nariz nos bolos tradicionais? Possuirá o EUROSTAT estatísticas de tal forma aterradoras sobre o número de mortes provocadas pela ingestão do bolo-rei que a medida se tornou urgente? É a isto que se reduz a actividade dos funcionários que trabalham em Bruxelas?
Vale a pena reflectir sobre a transformação do sonho europeu: o que é hoje a União Europeia, uma democracia, uma oligarquia ou uma ditadura colectiva? Se pensarmos na pouca influência que o Parlamento europeu tem, não é seguramente uma democracia. Note-se que o poder da União é detido pela Comissão, uma casta formada por altos funcionários, que não respondem perante ninguém, e pelo Conselho, que se entretém a defender os interesses nacionais, com preponderância para os dos agricultores franceses. O Parlamento europeu transformou-se numa espécie de clube onde se debatem coisas a que ninguém dá importância. Nos países onde as instituições parlamentares desempenham um papel relevante, não há político que, ao seu, prefira aquela tertúlia. Pobre e pagando pobremente aos seus deputados, Portugal é dos poucos países-membros onde existe uma bicha de gente desejosa de tomar o avião para Bruxelas. Visto do cantinho, o posto, que dá dinheiro, secretárias e viagens, é apetecível. A União Europeia nada mais é do que uma oligarquia dominada pela Alemanha e pela França.
A recente votação sobre a Constituição Europeia em França e na Holanda foi inesperada. O facto de a França, logo a França!, ter optado pelo não desesperou os comissários, forçados a reconhecer que os eleitores não gostavam tanto de Bruxelas quanto pensavam. A consequência foi positiva: a ideia de um Estado federal, um pesadelo corporativo, entrou em coma. Os políticos favoráveis à opção maximalista foram obrigados a reconhecer que as nações não são aves migratórias, mas entidades baseadas num território, numa tradição e numa cultura.
Por ter nascido num país onde a tradição liberal nunca encontrou raiz, tenho-me interrogado sobre qual, o tirano distante, de Bruxelas, ou o tirano próximo, do Terreiro do Paço, será o menor dos males. Diante do que sucedeu ao bolo-rei, encontrei a resposta. Prefiro o poder à beira Tejo. Pelo menos, a este posso atirar pedras. O que não me impede de continuar a pensar que uma Europa alargada é desejável. Aprecio viver num espaço em que é possível às ideias, ao comércio e às gentes circularem livremente. Mas não quero ter de aturar um supra-Estado que mande em tudo, até no bolo que como pelo Natal. A minha Europa não é a dos senhores comissários de Bruxelas, mas a de Mozart e de Mahler, de Eça e de Eliot, de Turner e de Turgueniev, isro é, uma Europa culta, livre e dinâmica». In Maria Filomena Mónica, Confissões de uma Liberal, Quasi Edições, 2007, ISBN 978-989-552-274-3.

Cortesia de QuasiE/JDACT