terça-feira, 24 de abril de 2018

O Número de Deus. José L. Corral. «… numa oficina como aprendiz, coordenando o trabalho com os estudos, para que, quando obtivesse o grau de oficial, tivesse uma bagagem que lhe permitisse aceder quanto antes ao grau de mestre»

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O Algarismo e o Número
«(…) Os mestres de Chartres ensinavam que Deus-pai era o primeiro e o mais perfeito dos geómetras, e assim representavam-no manejando um compasso, à maneira de um arquitecto que estivesse a criar o mundo a partir dos números e das figuras geométricas. Deste modo, o mistério da Trindade representava-se com um triângulo e a relação do Pai com o Filho, uma relação entre iguais, com a figura de um quadrado. E dessa relação os arquitectos estabeleciam aquilo a que chamavam o número de Deus, a relação geométrica harmónica e perfeita cuja aplicação permitia construir as novas catedrais da luz. Na biblioteca catedralícia havia textos de Platão, Cícero, Séneca, Boécio e Macróbio, todos eles devidamente anotados e comentados pelo mestre Bernardo de Chartres, que tinha descoberto Platão lendo Séneca e os seus preciosos comentários sobre a teoria platónica das ideias. Bernardo cristianizara as propostas filosóficas de Platão, identificando as ideias com o pensamento divino e, a partir daí, explicava a criação da matéria e a concepção do mundo.
O jovem Henrique de Ruão foi educado na teoria das ideias de Platão. Aos nove anos, assim que ingressou na escola, ensinaram-no a ler e a escrever e começou a estudar Latim, necessário para ler os livros da biblioteca. Depois, aprenderia Matemática, Geometria, Álgebra, Filosofia, Gramática, Retórica e Teologia. O pai preparou-lhe um plano de estudos para fazer dele um grande mestre-de-obras. Até aos treze anos aprenderia aquelas disciplinas imprescindíveis ao conhecimento, depois trabalharia numa oficina como aprendiz, coordenando o trabalho com os estudos, para que, quando obtivesse o grau de oficial, tivesse uma bagagem que lhe permitisse aceder quanto antes ao grau de mestre.
Para isso teria de ir estudar para Paris e visitar as obras das principais catedrais que estavam a ser construídas no reino de França. Só assim poderia comparar diferentes tipos de trabalhos, oficinas, materiais e técnicas, e dominar todos os aspectos da sua complexa disciplina. Henrique aprendia depressa; algumas questões não tinham segredos para ele, pois o pai tinha-lhe ido explicando os mistérios do ofício. Nós, os mestres-de-obras das catedrais, somos um grupo especial de homens, dissera-lhe numa ocasião. Deus pôs nas nossas mãos uma habilidade que muito poucos homens são capazes de desenvolver. Foi-nos concedido o dom de criar uma casa para morada de Deus, somos nós que construímos o seu templo, e esse privilégio é extraordinário.

O pior do Inverno já tinha passado. Em fins de Fevereiro de 1219, o rei Fernando e a sua mãe, a rainha Berenguela, reuniram-se em Burgos com o bispo Maurício. O prelado ainda estava aborrecido porque semanas antes se vira obrigado a excomungar os monges do poderoso mosteiro de São Domingos de Silos, que tinham recusado a reforma do cenóbio por ele proposta. Maurício, o bispo, não estava disposto a abdicar da sua autoridade como bispo da sede burgalesa e agira com dureza contra os monges do cenóbio. Para a rainha Berenguela essas disputas entre clérigos pareciam-lhe questões de muito pouca relevância. Ela estava agora ocupada em casar o seu filho rei de Castela com a princesa alemã Beatriz e não queria deixar que as suas energias fossem desperdiçadas em assuntos que considerava menores. O bispo Maurício acabava de receber a incumbência definitiva de partir para o Norte da Europa para ir buscar Beatriz e a custodiar na sua viagem até Burgos.
O bispo passeava entre a penumbra das naves da catedral. De vez em quando levantava a vista e contemplava as espessas abóbadas e as maciças paredes de pedra lavrada. Aquele edifício sempre lhe tinha parecido denso, frio e escuro, mais próprio de um templo do Maligno do que de casa de Deus. Os escassos e estreitos vãos, fechados com finas lâminas de alabastro, apenas deixavam passar débeis feixes de luz amarelenta, que em seguida se difundiam no ar criando um mundo de penumbras. Recordava com inveja a sua estada em Chartres, quando visitou as obras da nova catedral, cujas paredes se mostravam rasgadas por enormes vãos dispostos de modo a deixar entrar a luz a jorros, para inundar o templo com a luminosidade que só Deus era capaz de criar. Vez atrás de vez, o bispo Maurício repetia na sua cabeça o que tinha lido em tantas ocasiões nas sagradas Escrituras: que Deus era a luz, a luz do mundo». In José Luís Corral, O Número de Deus, 2004, O Segredo das Catedrais Góticas, Planeta Editora, Lisboa, 2006, ISBN 972-731-185-7.
                                                                                           
Cortesia de Planeta Editora/JDACT