sábado, 14 de abril de 2018

Dona Maria Pia de Sabóia. Maria Antónia Lopes. «Os adversários políticos atacaram os seus gastos, propalaram as suas excentricidades, ou caprichos, consideravam-na autoritária»

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Rainha que o povo amou. Maria Pia de Sabóia (1847-1911)
«Quando em 1910 a monarquia portuguesa foi extinta, havia em Portugal duas rainhas: dona Amélia e dona Maria Pia. E, contudo, a memória colectiva do episódio da partida para o exílio apenas reteve a figura de deona Amélia. Ignora-se quem foi dona Maria Pia, quando viveu, qual a sua personalidade. Surge a surpresa quando se afirma que a 5 de Outubro saíram de Portugal duas rainhas, reacção recorrente dos meus alunos, como é também em outros círculos alheados da história. Já em ambientes com outro nível de conhecimentos, à questão sobre o que sabem de dona Maria Pia, ouve-se caracterizá-la com algumas destas fórmulas: frívola, dissipadora, vaidosa, geniosa, detestando o marido, ciumenta da nora, desequilibrada, uma tonta. Repetem-se as célebres frases que se lhe atribuem e que, na realidade, são todas apócrifas: no me piace Luigi, gravado na vidraça com os brilhantes dos anéis; se eu fosse o rei mandava-o fuzilar, dirigindo-se a Saldanha em 1870; quem quer rainhas paga-as, quando a acusavam de gastar demasiado, etc.. Outros, ainda, referem-se a publicações recentes, de nível light, que fazem dela uma mulher adúltera sexualmente insaciável. No seu país de origem, a Itália, Maria Pia foi esquecida. Os estudos sobre os Saboias do século XIX ignoram-na quase totalmente.
Como explicar este apagamento de Maria Pia da memória colectiva portuguesa se em 1910, ao partir para o exílio, vivia em Portugal há quarenta e oito anos enquanto dona Amélia apenas há vinte e quatro? Como explicá-lo, sabendo nós que foi uma rainha amada pelo povo; que nunca foi vaiada ou desconsiderada em público, ao contrário de Carlos I e de dona Amélia; a única, no dizer de muitos, que deixava saudades? Como explicar também a imagem tão negativa que se lhe colou e que contraria flagrantemente a opinião maioritária da época? Como explicar, ainda, que nunca um historiador tenha escrito uma biografia desta rainha que tanto fascínio suscitou?
A imagem que se veicula actualmente da rainha Maria Pia é quase antagónica daquela que a sua época traçou. Ao tempo, a maioria dos portugueses considerava-a caritativa, generosa, afável, mãe e educadora severa e exemplar. Celebravam-lhe a elegância do porte, a coragem manifesta nos momentos decisivos, o sentido da majestade, o apoio sempre prestado ao marido, à dinastia e ao país, a simpatia e gentileza para com grandes e pequenos. Mas sabiam-na também gastadora em demasia e muitos diziam-na infeliz no casamento. Os adversários políticos atacaram os seus gastos, propalaram as suas excentricidades, ou caprichos, consideravam-na autoritária. A propaganda republicana e a dos monárquicos afastados do poder fizeram correr muitas difamações e boatos absurdos sobre todas as pessoas da família real. Nos finais da monarquia existiam na corte duas facções que se confrontavam, a de Carlos I e a de dona Amélia, veiculando cada uma delas notícias contraditórias. E foram-se construindo imagens incompatíveis da personalidade da rainha Maria Pia.
Acrescento outros factores que contribuíram, após o fim da monarquia, para o desabono e para o apagamento de Maria Pia: os monárquicos portugueses que enaltecem a família real centram-se, quanto às figuras femininas, em dona Amélia, romantizada por ter sido a última rainha e pela sucessão de tragédias que sofreu, deixando dona Maria Pia na sombra, embora esta tenha vivido também parte desses dramas. Para traçar o panegírico e ressaltar as qualidades de dona Amélia, os seus biógrafos franceses (que não são historiadores) não se coibiram em denegrir a sogra, com quem fizeram o confronto. A uma Amélia despretensiosa, corresponde uma Maria Pia soberba e vaidosa; a uma mente equilibrada, uma desequilibrada quando não mesmo alienada; a uma mulher de gostos simples e moderados, uma perdulária; a uma esposa exemplar, uma ninfomaníaca adúltera; a uma Amélia socialmente activa com obra importante e eficaz, uma Maria Pia filantrópica de espavento e sem real utilidade. Estas biografias assentam, pelo menos em parte, em afirmações orais e escritas de dona Amélia e da sua família. Ora, Amélia de Orleães viveu muitos anos após a implantação da República e falou e fez escrever o que quis, não se inibindo de traçar um retrato pouco lisonjeiro do marido, como Rui Ramos já salientou. E da sogra, acrescento eu.
Os historiadores portugueses, questionando-se pouco ou nada sobre a personalidade de Maria Pia, têm repetido certos comentários da época e apreciações posteriores, mas é óbvio o desinteresse ou condescendência que sentem por alguém que consideram de insignificante importância. Por vezes parecem partilhar do estereótipo da mulher bela e elegante que forçosamente é fútil. Porque é assim que Maria Pia é apresentada: uma mulher frívola, perdulária, pouco inteligente e instruída. E que por isso não era levada a sério nem pelos políticos e cortesãos, nem pelo marido, pelo filho mais velho ou pela sua família de origem. Afigura-se que, inconscientemente, certos autores assimilaram o que o século XIX pensava das capacidades cerebrais das mulheres. É também comum dizerem que teve episódios de loucura, ou, pelo menos, que era desequilibrada, e que enlouqueceu depois do regicídio. Na verdade, não encontrei na documentação primária o mais leve indício de desequilíbrio mental. Outra imagem forte desta rainha, que perdurou e se reproduz, são os seus gastos excessivos, o que, ressalvando alguns exageros, corresponde à verdade. Por fim, uma questão recentemente tratada.
Segundo Luís Espinha Silveira, dona Maria Pia teve como amante, nos finais da década de 1880, Tomás Sousa Rosa. A situação terá sido de tal forma grave que Luís I ponderou a separação e mesmo a sua própria abdicação. Não me parece que se possa ser tão categórico a este respeito. Debruçar-nos-emos sobre o assunto, pois a minha leitura é bastante diferente. Mas deve salientar-se que Espinha Silveira foi o único historiador actual que procurou perceber a personalidade de dona Maria Pia». In Maria Antónia Lopes, Rainha que o povo amou, Dona Maria Pia de Saboia, Círculo de Leitores, 2011, ISBN 978-972-424-718-2.

Cortesia de CLeitores/JDACT