sexta-feira, 27 de abril de 2018

Ensaio sobre os Latinismos dos Lusiadas. Carlos Eugénio Correa Silva (Paço d’Arcos). «Ao vago custaria a admitir de Sousa Viterbo opõe-se de um modo convincente a perfeita exactidão de muitos dos confrontos de Faria Sousa ou seja a semelhança»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) … que lhe serpenteavam a solarenga propriedade minhota (foi aliás a primeira impressão que teve o primeiro leitor do poema, frei Bartolomeu Ferreira, censor do Santo Ofício, maldito, que achou no poeta muito engenho e muita erudição nas ciências humanas. Há que responder a Sousa Viterbo: a grande cultura literária de Camões é atestada no poema pelo seu próprio testemunho e indirectamente pelo, conselho que ele dá aos cabos de guerra de que consagrem os seus ócios às letras. No que diz respeito aos clássicos latinos, único ponto que aqui nos interessa, conhecê-los, num literato do século XVI, era tão normal como num literato português de hoje conhecer a literatura francesa moderna (qual era o homem culto dos séculos XVI, XVII e XVIII que não sabia latim? Apontava-se a dedo. A simples leitura atenta dos Lusíadas revela a um leitor de cultura mediana,, pela super-abundância dè porme- nores mitológicos e de história antiga, uma grande erudição clássica.
Ao vago custaria a admitir de Sousa Viterbo opõe-se de um modo convincente a perfeita exactidão de muitos dos confrontos de Faria Sousa ou seja a semelhança evidente entre determinados passos, dos Lusíadas e tais outros passos de Vergílio, de Ovídio, de Horácio, de Lucano e de outros. Outro camonistá, este com dupla autoridade que lhe provinha de ser simultaneamente filólogo e humanista, Epifânio Dias, se bem que reconhecendo, o serviço enorme prestado à cultura portuguesa pelo erudito de há três séculos, emitiu todavia sobre as suas conclusões certas reservas que convém pôr em foco: Manuel Faria Sousa (1590-1649) dotou não só os Lusíadas, senão também as demais obras de Camões, de latim, dizia mais tarde Voltaire, de Shakespeare.
Portugal então não estava em atraso em relação à Europa. No Boosco delleytoso, que se situa possivelmente nos fins do século XIV (lições de filologia) há já muito humanismo. A febre humanística intensifica-se com Mateus Pisano (1460). Depois a nossa literatura quinhentista é em grande parte tributária da latina (cfr. Sá Miranda, António Ferreira). Mais ainda: o conhecimento construtivo do latim tornou-se então uma realidade; . (basta recordar os nomes de André Resende, Aires Barbosa, Jerónimo Osório, Aquiles Estaco, Diogo Teive e de outros que escreviam correntemente em latim). Sobre o valor e o culto do latim na vida mental e social do século XVI. Um comentário completo, escrito, ainda mal, em castelhano. De leitura verdadeiramente pasmosa, inflamado em sincero amor entusiástico do poeta, consumiu no seu trabalho longos anos, não deixando muito que respigar aos futuros comentadores dos Lusíadas. Tem, supérfluo é dizê-lo, erros e de feitos, mas, geralmente falando, ninguém melhor compreendeu o sentido do Poeta, não raras vezes difícil de alcançar... Outro defeito que nos descontenta sobremaneira ao percorrermos aquelas prolixas anotações, é que, não distinguindo entre verdadeiras reminiscências literárias e coincidências fortuitas que naturalmente se dão nos que tratam dos mesmos ou de análogos assuntos, Faria Sousa em tudo quer e ver inspirações dos poetas antigos e modernos, até em passos em que cita as fontes históricas das narrativas do poema. Por um dever de probidade mental, qualidade que julgo ser indispensável ao investigador, devo dizer que não tenho elementos para poder ajuizar do valor desta crítica de Epifânio Dias. Não pude compulsar no labor de todos os dias, por não se encontrar à venda e somente em raríssimas bibliotecas, o comentário célebre do seiscentista, conhecendo-o atravé das referências constantes que lhe faz a edição de Epifânio Dias. No entanto surgem logo ao espírito duas objecções: a) porque é que Epifânio Dias não aponta um facto concreto em defesa da sua afirmação, um exemplo típico em que se veja Faria Sousa tomar a nuvem por Juno e farejar uma reminiscência clássica onde apenas existe uma coincidência fortuita? b) é possível que num ou noutro pormenor Faria Sousa tenha visto uma reminiscência clássica onde ela não existia; no conjunto os seus confrontos são justificados, e o próprio Epifânio Dias centenas de vezes recorre a eles no aparato crítico da sua edição». In Carlos Eugénio Correa Silva (Paço d’Arcos), Ensaio sobre os Latinismos dos Lusiadas, 1931/35, imprensa da U. de Coimbra, 1972, Imprensa N. Casa da Moeda, Separata de O Instituto, vols. 79 a 82, à memória de Augusto Epifânio Silva Dias.

Cortesia de UdeCoimbra/INCM/JDACT