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«(…) … que lhe serpenteavam a solarenga
propriedade minhota (foi aliás a primeira impressão que teve o primeiro leitor
do poema, frei Bartolomeu Ferreira, censor do Santo Ofício, maldito, que achou no
poeta muito engenho e muita erudição nas ciências humanas. Há que responder a
Sousa Viterbo: a grande cultura literária de Camões é atestada no poema pelo
seu próprio testemunho e indirectamente pelo, conselho que ele dá aos cabos de
guerra de que consagrem os seus ócios às letras. No que diz respeito aos
clássicos latinos, único ponto que aqui nos interessa, conhecê-los, num
literato do século XVI, era tão normal como num literato português de hoje
conhecer a literatura francesa moderna (qual era o homem culto dos séculos XVI,
XVII e XVIII que não sabia latim? Apontava-se a dedo. A simples leitura atenta
dos Lusíadas revela a um leitor de cultura mediana,, pela super-abundância dè
porme- nores mitológicos e de história antiga, uma grande erudição clássica.
Ao vago custaria a admitir de Sousa
Viterbo opõe-se de um modo convincente a perfeita exactidão de muitos dos
confrontos de Faria Sousa ou seja a semelhança evidente entre determinados
passos, dos Lusíadas e tais outros passos de Vergílio, de Ovídio, de Horácio,
de Lucano e de outros. Outro camonistá, este com dupla autoridade que lhe
provinha de ser simultaneamente filólogo e humanista, Epifânio Dias, se bem que
reconhecendo, o serviço enorme prestado à cultura portuguesa pelo erudito de há
três séculos, emitiu todavia sobre as suas conclusões certas reservas que
convém pôr em foco: Manuel Faria Sousa (1590-1649) dotou não só os Lusíadas,
senão também as demais obras de Camões, de latim, dizia mais tarde Voltaire, de
Shakespeare.
Portugal então não estava em atraso em
relação à Europa. No Boosco delleytoso, que se situa possivelmente nos
fins do século XIV (lições de filologia) há já muito humanismo. A febre
humanística intensifica-se com Mateus Pisano (1460). Depois a nossa literatura
quinhentista é em grande parte tributária da latina (cfr. Sá Miranda, António
Ferreira). Mais ainda: o conhecimento construtivo do latim tornou-se então uma
realidade; . (basta recordar os nomes de André Resende, Aires Barbosa, Jerónimo
Osório, Aquiles Estaco, Diogo Teive e de outros que escreviam correntemente em
latim). Sobre o valor e o culto do latim na vida mental e social do século XVI.
Um comentário completo, escrito, ainda mal, em castelhano. De leitura
verdadeiramente pasmosa, inflamado em sincero amor entusiástico do poeta,
consumiu no seu trabalho longos anos, não deixando muito que respigar aos
futuros comentadores dos Lusíadas. Tem, supérfluo é dizê-lo, erros e de feitos,
mas, geralmente falando, ninguém melhor compreendeu o sentido do Poeta, não
raras vezes difícil de alcançar... Outro defeito que nos descontenta
sobremaneira ao percorrermos aquelas prolixas anotações, é que, não
distinguindo entre verdadeiras reminiscências literárias e coincidências
fortuitas que naturalmente se dão nos que tratam dos mesmos ou de análogos
assuntos, Faria Sousa em tudo quer e ver inspirações dos poetas antigos e
modernos, até em passos em que cita as fontes históricas das narrativas do poema.
Por um dever de probidade mental, qualidade que julgo ser indispensável ao
investigador, devo dizer que não tenho elementos para poder ajuizar do valor
desta crítica de Epifânio Dias. Não pude compulsar no labor de todos os dias, por
não se encontrar à venda e somente em raríssimas bibliotecas, o comentário
célebre do seiscentista, conhecendo-o atravé das referências constantes que lhe
faz a edição de Epifânio Dias. No entanto surgem logo ao espírito duas objecções:
a) porque é que Epifânio Dias não
aponta um facto concreto em defesa da sua afirmação, um exemplo típico em que
se veja Faria Sousa tomar a nuvem por Juno e farejar uma reminiscência clássica
onde apenas existe uma coincidência fortuita? b) é possível que num ou noutro pormenor Faria Sousa tenha visto
uma reminiscência clássica onde ela não existia; no conjunto os seus confrontos
são justificados, e o próprio Epifânio Dias centenas de vezes recorre a eles no
aparato crítico da sua edição». In Carlos Eugénio Correa Silva (Paço
d’Arcos), Ensaio sobre os Latinismos dos Lusiadas, 1931/35, imprensa da U. de
Coimbra, 1972, Imprensa N. Casa da Moeda, Separata de O Instituto, vols. 79 a
82, à memória de Augusto Epifânio Silva Dias.
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