terça-feira, 24 de abril de 2018

O Número de Deus. José L. Corral. «Com efeito, mestre. E por isso devemos render-nos perante a grandeza da sua criação, e perante a luz. A luz?»

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O Algarismo e o Número
«(…) Necessitamos de uma nova catedral, um templo de luz, uma catedral em que o poder criador de Nosso Senhor se manifeste em todo o seu esplendor e com toda a sua força, pensou. Ao sair da catedral deparou com o mestre Arnal Rendol, que regressava com a sua filha Teresa da abadia de Las Huelgas. O pintor e a filhita vinham montados numa mula que caminhava estafada. Boas tardes, Arnal, saudou o bispo. Senhor bispo, o mestre Rendol inclinou a cabeça e tirou o chapéu, ouvi dizer que partia para a Alemanha para ir buscar a futura rainha. Assim é. Dona Berenguela encarregou-me da custódia da princesa Beatriz. Sois um afortunado. Arnal desceu da mula, que tinha feito parar, puxando as rédeas. Sou-o por usufruir da confiança de suas majestades, disse o bispo. Que rota ides seguir? Irei pelo Caminho Francês. Quero chegar a Paris e dali dirigir-me para leste, até ao Império. É o caminho mais seguro. A Occitânia ainda está revoltada. Apesar da cruzada que Sua Santidade pregou contra os cátaros e da energia que o nobre Simão Monfort empregou em acabar com a heresia, esses endemoninhados hereges continuam empenhados em sustentar o seu erro e em se manterem em pecado. Não merecem outra coisa que não a fogueira.
Arnal teve de se conter para não se delatar ante o bispo. Desde que saíra de Pamiers fugindo da perseguição dos cruzados de Simão Monfort, não tivera oportunidade de reviver o seu passado cátaro. Uma vez instalado com a mulher em Burgos, tivera de se comportar e actuar como um fervoroso católico, mas, no fundo do coração, os seus sentimentos cátaros conservavam-se muito arreigados. Teve de fazer um esforço para não responder ao bispo e não revelar as suas íntimas crenças. Na verdade, tenho estado a meditar no interior da catedral e reparei no vosso fresco da Visitação da Virgem. É muito bom. Obrigado, Sua Eminência, senhor bispo Maurício, agradeceu Arnal. Mas que pena ter que ser destruído. Como!? Quero construir uma nova catedral em honra de Santa Maria, e desejo que seja edificada segundo o novo estilo francês. Esta será derrubada, e com ela, mestre Arnal, os vossos frescos. Arnal Rendol mordeu a língua; passados alguns instantes de meditada pausa, considerou: bem, só as obras de Deus são eternas. Com efeito, mestre. E por isso devemos render-nos perante a grandeza da sua criação, e perante a luz. A luz?
Sim, a luz. Fixai-vos no céu. Está a entardecer e a luz debilita-se por momentos. O que há um instante era luminosidade, dentro de momentos será escuridão. Entendeis a mensagem de Deus? Vós, mestre Arnal, sois um artista, reflectis nas vossas obras parte da majestosa plenitude da criação divina: pintais homens, mulheres, animais, paisagens, e fazei-lo segundo vos dita a vossa imaginação. De certo modo, sois um imitador da criação divina das coisas. Nunca tinha pensado que o meu trabalho fosse imitar Deus. Pois é-o, é-o. Vós, os artistas, fostes dotados com um dom extraordinário, uma qualidade que vos permite reflectir, ainda que seja palidamente, a grandeza da Criação. A nossa arte é apenas urna habilidade. Não, é mais, muito mais do que isso. Deus manifesta-se através das vossas mãos, é Ele quem as dirige. Talvez, senhor bispo, talvez.
Não duvideis disso, mestre Arnal, não duvideis disso. Arnal Rendol despediu-se do bispo Maurício. Pegou nas rédeas da mula e seguiu para casa. Pai, disse-lhe Teresa, tu és como Deus? Não, filha, claro que não. Mas o senhor bispo disse que... Dom Maurício apenas disse que nós, os artistas, tentamos imitar a obra de Deus. Ao chegar a casa, Amal fechou a azémola no estábulo e ordenou a um dos aprendizes que viviam com ele que tirasse os arreios ao animal e enchesse a manjedoura de palha fresca e o bebedouro de água. O dia tinha sido muito duro. As monjas de Las Huelgas tinham-lhe encomendado uma pintura mural que representasse as bodas de Caná, e queriam tê-la pronta depressa, antes que o rei Fernando se casasse com a princesa alemã». In José Luís Corral, O Número de Deus, 2004, O Segredo das Catedrais Góticas, Planeta Editora, Lisboa, 2006, ISBN 972-731-185-7.
                                                                                           
Cortesia de Planeta Editora/JDACT