O Algarismo e o Número
«(…) Necessitamos de uma nova catedral, um templo
de luz, uma catedral em que o poder criador de Nosso Senhor se manifeste em
todo o seu esplendor e com toda a sua força, pensou. Ao sair da catedral
deparou com o mestre Arnal Rendol, que regressava com a sua filha Teresa da
abadia de Las Huelgas. O pintor e a filhita vinham montados numa mula que
caminhava estafada. Boas tardes, Arnal, saudou o bispo. Senhor bispo, o mestre
Rendol inclinou a cabeça e tirou o chapéu, ouvi dizer que partia para a
Alemanha para ir buscar a futura rainha. Assim é. Dona Berenguela encarregou-me
da custódia da princesa Beatriz. Sois um afortunado. Arnal desceu da mula, que
tinha feito parar, puxando as rédeas. Sou-o por usufruir da confiança de suas
majestades, disse o bispo. Que rota ides seguir? Irei pelo Caminho Francês.
Quero chegar a Paris e dali dirigir-me para leste, até ao Império. É o caminho
mais seguro. A Occitânia ainda está revoltada. Apesar da cruzada que Sua Santidade
pregou contra os cátaros e da energia que o nobre Simão Monfort empregou em
acabar com a heresia, esses endemoninhados hereges continuam empenhados em sustentar
o seu erro e em se manterem em pecado. Não merecem outra coisa que não a
fogueira.
Arnal teve de se conter para não se delatar
ante o bispo. Desde que saíra de Pamiers fugindo da perseguição dos cruzados de
Simão Monfort, não tivera oportunidade de reviver o seu passado cátaro. Uma vez
instalado com a mulher em Burgos, tivera de se comportar e actuar como um
fervoroso católico, mas, no fundo do coração, os seus sentimentos cátaros
conservavam-se muito arreigados. Teve de fazer um esforço para não responder ao
bispo e não revelar as suas íntimas crenças. Na verdade, tenho estado a meditar
no interior da catedral e reparei no vosso fresco da Visitação da Virgem. É
muito bom. Obrigado, Sua Eminência, senhor bispo Maurício, agradeceu Arnal. Mas
que pena ter que ser destruído. Como!? Quero construir uma nova catedral em
honra de Santa Maria, e desejo que seja edificada segundo o novo estilo
francês. Esta será derrubada, e com ela, mestre Arnal, os vossos frescos. Arnal
Rendol mordeu a língua; passados alguns instantes de meditada pausa,
considerou: bem, só as obras de Deus são eternas. Com efeito, mestre. E por
isso devemos render-nos perante a grandeza da sua criação, e perante a luz. A
luz?
Sim, a luz. Fixai-vos no céu. Está a
entardecer e a luz debilita-se por momentos. O que há um instante era
luminosidade, dentro de momentos será escuridão. Entendeis a mensagem de Deus?
Vós, mestre Arnal, sois um artista, reflectis nas vossas obras parte da
majestosa plenitude da criação divina: pintais homens, mulheres, animais,
paisagens, e fazei-lo segundo vos dita a vossa imaginação. De certo modo, sois
um imitador da criação divina das coisas. Nunca tinha pensado que o meu trabalho
fosse imitar Deus. Pois é-o, é-o. Vós, os artistas, fostes dotados com um dom extraordinário,
uma qualidade que vos permite reflectir, ainda que seja palidamente, a grandeza
da Criação. A nossa arte é apenas urna habilidade. Não, é mais, muito mais do
que isso. Deus manifesta-se através das vossas mãos, é Ele quem as dirige. Talvez,
senhor bispo, talvez.
Não duvideis disso,
mestre Arnal, não duvideis disso. Arnal Rendol despediu-se do bispo Maurício.
Pegou nas rédeas da mula e seguiu para casa. Pai, disse-lhe Teresa, tu és como
Deus? Não, filha, claro que não. Mas o senhor bispo disse que... Dom Maurício
apenas disse que nós, os artistas, tentamos imitar a obra de Deus. Ao chegar a
casa, Amal fechou a azémola no estábulo e ordenou a um dos aprendizes que viviam
com ele que tirasse os arreios ao animal e enchesse a manjedoura de palha
fresca e o bebedouro de água. O dia tinha sido muito duro. As monjas de Las
Huelgas tinham-lhe encomendado uma pintura mural que representasse as bodas de
Caná, e queriam tê-la pronta depressa, antes que o rei Fernando se casasse com
a princesa alemã». In José Luís Corral, O Número de Deus, 2004,
O Segredo das Catedrais Góticas, Planeta Editora, Lisboa, 2006, ISBN
972-731-185-7.
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