segunda-feira, 23 de abril de 2018

Por Amor a uma Mulher. Domingos Amaral. «Agora sente-se forte, imaginar vitórias animou-o, mas logo se lembra do que ouviu Egas ou Ermígio dizerem, que sem Paio Soares a comandá-las as tropas…»

jdact

Coimbra, Julho de 1117
«(…) Uma mãe tem de dar carinho, estar lá, beijar os filhos. Caso contrário, não é uma mãe, é mãe só de nome. Ora, dona Teresa nunca estava. Via o filho uma ou duas vezes por ano, quando ia a Lamego ou a Viseu, ou ele ia a Coimbra, mas limitava-se a olhar para ele e a dizer: estais mais crescido. E era tudo. Nunca lhe dava um beijo, embora exigisse que ele lhe beijasse a mão. Não era grande coisa como mãe. Nunca foi. A verdadeira mãe do Afonso Henriques foi sempre a minha mãe, Dordia Viegas. Ela mimava-o, penteava-o, vestia-o, à noite levava-o para a cama e fazia-lhe o sinal-da-cruz na testa, como a mim, ao Afonso ou ao Soeiro. Tratava-o como nos tratava a nós três, seus filhos. Com ternura, como uma mãe deve. E ele retribuía, amava-a como nós a amávamos, sempre de roda dela, a pedir coisas, a reclamar atenção. Uma vez, o Afonso Henriques disse-me: Deus é injusto. O meu pai morreu, tinha eu três anos, mal o conheci, só às suas barbas cinzentas e falantes. E Dordia, a minha única mãe, morreu naquele Verão do cerco a Coimbra!
Para minha grande tristeza e de toda a família dos Moniz de Ribadouro, Dordia Viegas já arfava muito, tinha de sentar-se constantemente, e à mesa estava sempre com um ar calmo de mais, como quem tinha muitas dores mas sofria em silêncio, para não incomodar os outros. Tanto o meu amigo como eu sabíamos que, se ela subisse ao Céu, ninguém mais nos iria dizer: vinde dar-me um beijo! Isso entristecia-o muito, dizia-me o meu melhor amigo, e era por isso que fazia um esforço para imaginar combates sangrentos logo de manhã, no alto do castelo de Coimbra. Enquanto o arqueiro suspende a sua ronda, a um canto da torre, o menino mira de novo a faustosa tenda do califa, e promete a si próprio que quando for grande o vai derrotar. Terá de aprender a usar a enorme espada de seu pai, a montar, a vestir a cota de malha e a armadura, mas será o mais hábil, corajoso e destemido cavaleiro do Condado Portucalense.
Agora sente-se forte, imaginar vitórias animou-o, mas logo se lembra do que ouviu Egas ou Ermígio dizerem, que sem Paio Soares a comandá-las as tropas de dona Teresa pouco valem, pois Bermudo de Trava, seu marido, não nasceu para empunhar uma espada! Ontem, escutou também as meninas árabes a intrigarem, aos risinhos, nas suas costas: A rainha não gosta do Bermudo, gosta é do irmão, do Fernão! O menino já reparou que dona Teresa também nunca beija o marido em público, eles nem se tocam, não há uma festa carinhosa, uma ternura visível. Nunca viu sequer um abraço e sempre atribuiu essa falha à maneira de ser de dona Teresa. Dordia diz que ela é arisca, quando falam na condessa que agora se diz rainha, o que é raro, pois Dordia evita falar dela.
A esta hora, quando o Sol mal nasceu a leste, e enquanto o arqueiro se volta a aproximar dele, dona Teresa ainda deve estar a dormir. Costuma levantar-se tarde, ao contrário do seu marido galego, que dorme noutro quarto. O menino não consegue conversar com Bermudo, pois ele raramente fala. O personagem parece mudo e tolo, só abana a cabeça, confirmando qualquer ordem da autoritária esposa. Tudo o que Bermudo diz é: bom dia. E, horas depois: boa noite». In Domingos Amaral, Assim Nasceu Portugal, Por Amor a uma Mulher, Casa das Letras, 2015, ISBN 978-989-741-262-2.

Cortesia de CdasLetras/JDACT