domingo, 15 de abril de 2018

Dona Maria Pia de Sabóia. Maria Antónia Lopes. «… boneca caprichosa, orgulhosa, ardente, brava, sem medo, desprezando a vida e considerando a sua qualidade de rainha…»

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Rainha que o povo amou. Maria Pia de Sabóia (1847-1911)
«(…) Neste livro tento compreender uma vida e um carácter, mas, como obra histórica que é, não pode deixar correr a imaginação sem o suporte documental. E este nem sempre existe. No caso vertente, a questão agrava-se com a sonegação de documentos (de certeza importantes) por quem não tinha qualquer legitimidade para o fazer, uma vez que se trata de um conjunto documental pertencente a uma instituição pública. Refiro-me ao facto de não ter sido autorizada a consultar a documentação existente no Palácio Nacional da Ajuda (não confundir com a Biblioteca da Ajuda), onde, na verdade, tais documentos não deveriam estar por se tratar de um museu e não de um arquivo ou biblioteca. Não iniciei esta investigação com o propósito de ser original à força, revendo a imagem de Maria Pia de Saboia em sentido positivo ou negativo. E, contudo, à medida que a investigação decorria, apercebi-me cada vez mais nitidamente de que esta mulher tem sido mal interpretada e que se trata de uma pessoa muito mais rica e interessante do que se tem afirmado. A minha posição é incómoda. Não há dúvida de que, em nome do rigor histórico, a personalidade tem de ser revista num sentido positivo, tanto no que se refere às suas qualidades humanas, como às suas capacidades políticas, mas este livro não é um panegírico de Maria Pia, nem, evidentemente, a sua detracção ou a de outrem.
Como disse, não existe nenhuma biografia da rainha Maria Pia assente em investigação, embora desde o seu tempo até à actualidade (2009) muitos autores se lhe tenham referido para traçar as vidas dos monarcas Luís I, Carlos I e da rainha dona Amélia ou para analisar a época. Tais escritos possuem valor muito distinto, indo da mera recolha acrítica de notícias da imprensa, boatos e lendas, ou da compilação de informações historiográficas dispersas, até à verdadeira investigação histórica que, muito recentemente, recorreu a documentação privada produzida pela própria rainha. Uma obra histórica, comecemos por esclarecer, assenta sempre, pelo menos em parte, em fontes, o que significa documentos da época, que podem ser de natureza muito diversificada. Quando assim não sucede, quando se trabalha a partir de estudos, estamos perante um trabalho de síntese ou de um ensaio, mas não de um texto historiográfico. Além do recurso a fontes, é necessário dominar a metodologia histórica da investigação e da exposição. Por isso, a história não pode ser confundida com relatos publicados por pessoas bem intencionadas mas sem o domínio dos saberes, das técnicas e da deontologia inerentes a esta ciência, Um pequeno livro publicado em 2007 com o título Maria Pia: Rainha e mulher, de autoria de José Manuel Pavão e João Cerqueira, é um exemplo de uma síntese. Tem a valia de reunir, pela primeira vez, informação que se encontrava dispersa, mas não acrescenta saber porque apenas compilou o que já estava escrito e era conhecido. Contudo, apesar das evidentes limitações e equívocos de que enferma, é uma síntese honesta. Já a passagem que as autoras de Amantes dos reis de Portugal dedicam a Maria Pia é dos exemplos mais flagrantes de leviandade de quem escreve sobre o que não estudou e sobre o que nunca reflectiu. Desculpável em tantos que, sem formação, publicam e alcançam êxitos fáceis, é inadmissível a quem se apresenta como historiador.
Autores mais antigos, alguns seus contemporâneos, escreveram sobre dona Maria Pia. Todos estes autores apresentam uma imagem muito favorável de dona Maria Pia. Pouco lisonjeiras são as apreciações da condessa de Rio Maior (Isabel Sousa Botelho), marquês de Fronteira (José Trazimundo Mascarenhas Barreto), Júlio Vilhena (1916), Raul Brandão (1998 e1925) e Aires Sá (1928). César Silva (1922), que demonstra admiração por Maria Pia, considera que na intimidade, porém, acusava um desequilíbrio por vezes desastroso. Era uma histérica. Rocha Martins (1926 e 1931) romanceia, deixa correr sem freios a imaginação, além de apresentar erros factuais e interpretações muito datadas. Define dona Maria Pia como boneca caprichosa, orgulhosa, ardente, brava, sem medo, desprezando a vida e considerando a sua qualidade de rainha acima de todas as vulgaridades, era sublime e bondosa, majestática e humilde, doce e irritável, uma histeria desenvolvida num corpo nado para os nervosismos e que as constantes contrariedades tinham levado ao excesso, ao tormento. Segundo o mesmo autor, depois do regicídio, transformou-se em uma tontinha a regar as flores dos seus tapetes. Raul Brandão, cujo diário publicado com o título de Memórias é muito utilizado, está na origem de inúmeras fantasias sobre Maria Pia, repetidas ad nauseam. Brandão registava toda a maledicência que corria em Lisboa, sem lhe aplicar qualquer crivo crítico, publicando os boatos mais inverosímeis. Tem também equívocos, só possíveis se o texto foi escrito ou acrescentado muito depois das datas que refere. Afirma, por exemplo, que no dia 11 de Maio de 1903 se discutiu na Câmara dos Pares a viagem da rainha dona Amélia, sendo acusada de ter inventado esse pretexto para não receber Émile Loubet, presidente da França. Ora, quem visitou Portugal em 1903 durante a ausência de dona Amélia foi o rei Eduardo VII. Loubet esteve em Lisboa em 1905 e foi recebido por dona Amélia e quem se encontrava no estrangeiro nesta altura era a rainha Maria Pia. No segundo volume, Raul Brandão mudou, humanizou-se. O tom é mais reflectido e quando relata boatos faz algumas apreciações sobre a sua credibilidade». In Maria Antónia Lopes, Rainha que o povo amou, Dona Maria Pia de Saboia, Círculo de Leitores, 2011, ISBN 978-972-424-718-2.

Cortesia de CLeitores/JDACT