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O fogo
de Maria
«(…) À chegada, Celeste Maria aguardava-a
impacientemente, receando a reacção do companheiro, que já andava embrenhado na
lida da terra, e apressou-se a encarregar a catraia de entregar o cesto ao
sacerdote. E assim, tão leve e solta como arribou, lá saiu de novo a pequena Maria,
cabriolando pelos carreiros até ao vigário. Paciente, o bom padre João Martins Lopes
aceitou a oferenda da menina, fingiu inspeccionar com interesse o seu conteúdo,
convidando-a por fim, a acompanhá-lo ao pomar. Não queres umas laranjas, Maria Angelina?
Oh, se quero, senhor prior!, replicou ela prontamente, esfregando as mãos. Então,
anda daí. Vais colhê-las tu mesma! Mas se eu não lhes chego, como hei-de ser eu
fazê-lo? Eu pego-te ao colo e achego-te a elas. Quando somos nós a colhê-las,
sabem melhor. Minutos mais tarde, enquanto Maria se refastelava com a fruta colhida,
o padre atalhou: olha lá, rapariga... Então tu hoje esqueceste-te dos teus deveres
e abalaste desenfreada pelos campos? Dos meus deveres? Ah, sim, de dar de comer
aos animais. Mas não se apoquente, que a esta hora a minha mãe já cuidou deles.
Certamente que sim, mas a questão
aqui é outra. Outra, senhor padre!, surpreendia-se a pequena, fitando-o, incerta,
com os seus grandes e expressivos olhos castanhos. Não sabes a que me refiro, Maria
Angelina?, perguntou suavemente o padre, atento à reacção da menina, que acenou
que sim com a sua cabecita de cabelos da cor da terra, fechando a expressão. Não
tenhas medo, que eu não te vou ralhar. Mas o homem da senhora minha irmã vai. Há-de
arriar-me com o cinto. Desta vez, não. Já estive de prosa com ele. Agora, tens de
me prometer que de ora em diante vais obedecer à tua santa mãezinha e ajudá-la
na lida. Assim o teu cunhado não terá por que te repreender. Quando não tem, arranja!
Não há dia em que não me desanque, queixou-se Maria Angelina, descoroçoada. Exageras,
moça. Não, meu bom pároco, eu não sou de mentir! Bem sei, bem sei, mas talvez empoles
um quanto as coisas. O António quer mal à minha irmã Celeste por ela ter um
filho de outro homem. Passa a vida a condená-la por isso.
Até já lhe assentou a mão! E quando
o petiz está em casa da madrinha, é em mim e nela que se vinga. Pobre Celeste, não
tem tido sorte. A vida pregou-lhe uma rasteira e hoje recrimina-se por isso. Deixa-se
ficar. Ah, mas dessa vez, não! Nesse dia, quando depois de lhe bater o António começou
a dirigir-se a mim, ela atravessou-se-lhe à frente e encarou-o. Levantou o
queixo e perguntou-lhe: só te sentes homem quando dás em alguém? Olha que bater
nos mais fracos não é de grande bravura. Ainda não estás satisfeito? Tens aqui muito
em que cascar, disse pondo as mãos no peito. Queres bater, bate em mim, deixa a
miúda em paz! Ou então vai à taberna entornar uns canecos. E deixa-te por lá ficar.
A menina Celeste a enfrentar o desordeiro, quem havia de dizer? Oh, uma coisa de
dar gosto! Depois disso, ele ainda andou uns tempos mais manso, mas depois,
senhor padre, depois voltou tudo ao mesmo: coça aqui, tareia ali, gritos e zaragatas.
É por isso que saio, a sorrir às flores e aos bichos, para longe daquele inferno».
In
Maria João Fialho Gouveia, Maria da Fonte, Topseller, 20/20 Editora, 2017, ISBN
978-989-886-955-5.
Cortesia de Topseller/20/20
E/JDACT