quinta-feira, 12 de abril de 2018

Maria da Fonte. Maria João F. Gouveia. «O António quer mal à minha irmã Celeste por ela ter um filho de outro homem. Passa a vida a condená-la por isso»

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O fogo de Maria
«(…) À chegada, Celeste Maria aguardava-a impacientemente, receando a reacção do companheiro, que já andava embrenhado na lida da terra, e apressou-se a encarregar a catraia de entregar o cesto ao sacerdote. E assim, tão leve e solta como arribou, lá saiu de novo a pequena Maria, cabriolando pelos carreiros até ao vigário. Paciente, o bom padre João Martins Lopes aceitou a oferenda da menina, fingiu inspeccionar com interesse o seu conteúdo, convidando-a por fim, a acompanhá-lo ao pomar. Não queres umas laranjas, Maria Angelina? Oh, se quero, senhor prior!, replicou ela prontamente, esfregando as mãos. Então, anda daí. Vais colhê-las tu mesma! Mas se eu não lhes chego, como hei-de ser eu fazê-lo? Eu pego-te ao colo e achego-te a elas. Quando somos nós a colhê-las, sabem melhor. Minutos mais tarde, enquanto Maria se refastelava com a fruta colhida, o padre atalhou: olha lá, rapariga... Então tu hoje esqueceste-te dos teus deveres e abalaste desenfreada pelos campos? Dos meus deveres? Ah, sim, de dar de comer aos animais. Mas não se apoquente, que a esta hora a minha mãe já cuidou deles.
Certamente que sim, mas a questão aqui é outra. Outra, senhor padre!, surpreendia-se a pequena, fitando-o, incerta, com os seus grandes e expressivos olhos castanhos. Não sabes a que me refiro, Maria Angelina?, perguntou suavemente o padre, atento à reacção da menina, que acenou que sim com a sua cabecita de cabelos da cor da terra, fechando a expressão. Não tenhas medo, que eu não te vou ralhar. Mas o homem da senhora minha irmã vai. Há-de arriar-me com o cinto. Desta vez, não. Já estive de prosa com ele. Agora, tens de me prometer que de ora em diante vais obedecer à tua santa mãezinha e ajudá-la na lida. Assim o teu cunhado não terá por que te repreender. Quando não tem, arranja! Não há dia em que não me desanque, queixou-se Maria Angelina, descoroçoada. Exageras, moça. Não, meu bom pároco, eu não sou de mentir! Bem sei, bem sei, mas talvez empoles um quanto as coisas. O António quer mal à minha irmã Celeste por ela ter um filho de outro homem. Passa a vida a condená-la por isso.
Até já lhe assentou a mão! E quando o petiz está em casa da madrinha, é em mim e nela que se vinga. Pobre Celeste, não tem tido sorte. A vida pregou-lhe uma rasteira e hoje recrimina-se por isso. Deixa-se ficar. Ah, mas dessa vez, não! Nesse dia, quando depois de lhe bater o António começou a dirigir-se a mim, ela atravessou-se-lhe à frente e encarou-o. Levantou o queixo e perguntou-lhe: só te sentes homem quando dás em alguém? Olha que bater nos mais fracos não é de grande bravura. Ainda não estás satisfeito? Tens aqui muito em que cascar, disse pondo as mãos no peito. Queres bater, bate em mim, deixa a miúda em paz! Ou então vai à taberna entornar uns canecos. E deixa-te por lá ficar. A menina Celeste a enfrentar o desordeiro, quem havia de dizer? Oh, uma coisa de dar gosto! Depois disso, ele ainda andou uns tempos mais manso, mas depois, senhor padre, depois voltou tudo ao mesmo: coça aqui, tareia ali, gritos e zaragatas. É por isso que saio, a sorrir às flores e aos bichos, para longe daquele inferno». In Maria João Fialho Gouveia, Maria da Fonte, Topseller, 20/20 Editora, 2017, ISBN 978-989-886-955-5.

Cortesia de Topseller/20/20 E/JDACT