sexta-feira, 11 de setembro de 2020

A Casa do Pó. Fernando Campos. «Os caracteres góticos do título são enquadrados por tarjas ornadas onde se vêem aves entre flores e frutos. Ao centro, em baixo, um L com a haste posta no meio de uma coroa»

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A porta do mundo

«(…) No topo de cada caixa, presa no divisório, encontra-se uma lauda manuscrita, é dessa massa que eles se fazem!..., por onde dois oficiais, sentados em frente, vão lendo o texto para de seguida escolherem os respectivos tipos e comporem as formas. Se algum dia escreverdes uma, já sabeis: tendes aqui o vosso tipógrafo, se Deus me der saúde. Trabalham com rapidez, como quem de há muito se acostumou ao ofício. Muito vos agradeço, mestre Germão. Mas mestre Germão já se encontra metendo outra folha no prelo e empurra com ambas as mãos uma alavanca que, ligada a um grosso parafuso de madeira, o faz girar e chiar, apertando a prensa de modo a premir a chapa contra o papel. No meio da sala trabalham outros obreiros, em frente de caixas que contêm letras iniciais de imaginosos feitios, vinhetas, tarjas, florões, gravuras, estampas, portadas e outros muitos elementos da arte. Numa grande mesa vêem-se rimas de papel e mais papel vem entrando por uma porta ao fundo, à cabeça de um serviçal. Atrás de mestre Germão um batedor segura em cada mão as maçanetas de pelica embebidas em tinta, bate-as e esfrega-as numa placa de mármore, para regularizar por toda a bala o líquido negro e viscoso, e procede depois à cuidadosa tintagem de uma nova forma. No lado oposto é o canto do encadernador e já se vêem em cima de uma mesa alguns volumes que, saídos de fresco do prelo, ali foram vestir a sua camisa de pele. Numa linda estante rendilhada, de pé torneado, está aberto para regalo dos olhos um riquíssimo livro de horas, iluminado a ouro e prata.

Acabamos!, exclama alegremente mestre Galhardo, deslassando o torno, pegando na última folha impressa e, com ela bem alta nas mãos, lendo os dizeres finais do cólofon:

Impresso em a muito nobre e sempre leal cidade de Lisboa, por Germão Galhardo imprimidor, aos vinte e três dias de Abril, ano da nossa salvaçam de mil quinhentos e quarenta e três.

É o Reportório dos Tempos em Linguagem Português, de Valentim Fernandes, mas mestre Galhardo já me toma do braço e me leva a ver, num aposento ao lado, a sua livraria, formada pelas edições da sua oficina, ao longo dos anos, desde que se estabelecera em Portugal. Vêem-se os volumes, já encadernados, muito bem enfileirados nas estantes. Aí tinha minha paternidade!, satisfação à flor da pele no rosto do mestre tipógrafo e um gesto largo do braço direito a correr aquelas lombadas. Uma vida de trabalho!..., ... que esperemos em Deus, atalho eu, seja ainda muito longa. Amém! Aproximo-me. Aqui está o Tratado da Esfera, de Cláudio Ptolomeu Alexandrino, tirado do latim em linguagem pelo doutor Pedro Nunes, cosmógrafo de el-rei. Lembro-me de ter visto o De Amicilia e o Somnium Scipionis, de Marco Túlio Cícero, livros que eu já tinha adquirido num livreiro da cidade, bem como uma Gramática da Linguagem Portuguesa mandada imprimir pelo nobre senhor dom Fernando Almada, uma Prática de Aritmética, da autoria do licenciado Rui Mendes, e autos de António Ribeiro Chiado, e muitas, muitas mais que é impossível citar tantas elas são... Mestre Germão folheia alguns e incita-me a apreciar as ornamentações do rosto e do interior das suas edições, mostra-me com natural orgulho as suas marcas de imprimidor, que em alguns livros são a esfera armilar e noutros, visto ser tipógrafo de el-rei, o escudo das armas reais com um grifo no timbre. Toma da Crónica do Imperador Clarimundo donde os Reis de Portugal Descendem e aponta-me a gravura que representa o imperador, de pé, junto de um trono em que se apoiam as raízes da árvore genealógica dos reis portugueses. Como eu sou franciscano, escolhe numa estante um pequeno volume e mostra-mo: Como São Francisco, lê ele Buscasse a Pobreza. Por Um Franciscano da Província da Piedade. Lisboa.

Insiste em que o folheie. O título é enquadrado por uma portada de colunas encimadas por um frontão que, ao meio, figura um pelicano com o bico a espetar o próprio peito, sobre um ninho cheio de filhinhos de goela aberta. Porquê o pelicano?, pergunto, lembrando-me do meu medalhão. Quando uma oficina destas acaba, por morte do seu dono ou por outro motivo, os herdeiros ou prosseguem a obra ou vendem o recheio. Tenho adquirido algum material tipográfico por este processo. Haveis de concordar que o símbolo do pelicano é um lindo símbolo. Conheceis um desenho de um pelicano com uma estrela de cinco pontas no peito? Com uma estrela?!... Ora deixasse ver!...», dizia ele, cofiando o queixo e revolvendo os olhos. Com uma estrela... Não, julgava nunca ter visto. A estrela ou estrelas entravam muitas vezes nos brasões de certos fidalgos. Cria que significavam vitórias sobre os mouros... E o pelicano? O pelicano?... Esperasse... Tinha ali, salvo erro, um livro..., e ia à estante procurar um volume. Não encontrava logo. Toma um, abre-o no rosto, aponta-me despreocupadamente vinhetas, a alternância de cores, o negro e o vermelho, uma iluminura envolvendo uma inicial... Ah! Cá está 1 Regra e Estatutos da Ordem de Santiago... Vede.

E mostra-me o frontispício. Os caracteres góticos do título são enquadrados por tarjas ornadas onde se vêem aves entre flores e frutos. Ao centro, em baixo, um L com a haste posta no meio de uma coroa. Voltado o fólio, um brasão e no brasão..., um pelicano! São as armas, explica-me Germão Galhardo, respondendo à solicitação do meu olhar, do mestre de Santiago e de Avis, o senhor duque de Coimbra..., Este L quer dizer Lancastre, Jorge de Lancastre, filho do rei João II. Conservou a divisa do pai, que era o pelicano. No meu espírito surgia a relutância de aceitar aqueles dois factos como indícios de algo que me dissesse respeito e achava ridículo tomar a sério meras coincidências. O pelicano da portada tipográfica e o do brasão de dom Jorge tinham tanto a ver comigo como ser o pano do hábito franciscano da rainha velha, dona Leonor, da mesma peça que o do meu hábito. Quando me despedi de mestre Galhardo, em mim não havia o mais leve traço do incidente e a minha atenção era solicitada de novo pelo movimento e ruído da cidade, cada vez maiores à medida que me aproximava do centro». In Fernando Campos, A Casa do Pó, Difel, 1986, Editora Objectiva, Alfaguara, 2012, ISBN 978-989-672-114-5.

Cortesia de Difel/Alfaguara/JDACT

A Arte da Escrita, Fernando Campos, JDACT, Literatura,