«Os séculos XII e XIII poderiam ser chamados de séculos heréticos, caso pudéssemos olhar a história de uma época ou período sob um único prisma, ou seja, o da história da Igreja Ocidental. A palavra heresia (do grego hairesis, hairein, que significa escolher) acompanhou a vida da Igreja desde os inícios, e para os escritores eclesiásticos o termo designava uma doutrina contrária aos princípios da fé oficialmente declarada. As primeiras heresias distinguem-se das que ocorreram nos séculos XII e XIII pelo seu carácter puramente filosófico e teológico que fazia especulação racional em torno dos princípios ou dogmas cristãos, em geral planos do pensamento que tratavam da Trindade, da natureza divina e humana de Cristo e da própria relação existente entre ambas, bem como de questões ligadas à essência da divindade. Porém, o que caracteriza as heresias posteriores, isto é, as da Baixa Idade Média, é o seu cunho popular assentado sobre uma nova visão ética da instituição eclesiástica e do cristianismo como religião vigente na sociedade ocidental. O caráter intolerante da religião cristã em relação aos seus heterodoxos afirma-se desde o início, pois, desde que foi dada importância à unidade de doutrina, a partir do Concílio de Nicéia, procurou-se usar a autoridade do Estado de privar os sacerdotes heréticos das suas imunidades e também dos seus privilégios. Constantino foi o primeiro a tomar tal iniciativa com a devida severidade e a convicção segura de que assim deveria ser. E mesmo antes de Nicéia e de Constantino, alguns expoentes da literatura patrística tenderam, às vezes, no ardor da polémica contra os heréticos, a recorrer a meios mais persuasivos do que a simples argumentação. Tertuliano, que defendia a liberdade de consciência, pôs de lado parte das suas convicções quando resolveu combater os gnósticos com meios mais violentos. E os montanistas foram combatidos com violência semelhante pelos defensores da fé no segundo século de nossa era. Ao poder temporal foi atribuída a função primária de defender a integridade da sociedade cristã perante as ameaças da heresia, e sabemos que no desenvolvimento das relações entre Igreja e Estado este aspecto foi alvo da teorização que defendia tanto o regnum quanto o sacerdotium.
A
grande variedade e a multiplicação de movimentos ou grupos heréticos nestes
dois séculos leva-nos a perguntar e a inquirir sobre as causas que levaram a
concentrar uma oposição tão forte, e mesmo violenta, contra o corpo
eclesiástico e contra as verdades tradicionais da Igreja Romana. Na verdade,
podemos ver na crítica herética, ou melhor dito, em parte desta crítica, uma
tentativa de apontar os erros e os desvios da instituição eclesiástica, da sua
intervenção no poder secular à custa de sua missão espiritual; enfim, uma
tentativa de alertar a sociedade cristã de que os seus representantes
desvirtuaram a verdadeira imagem da religião fundada por Cristo. A medida que
esta crítica é feita, mais se aprofundam as diferenças entre o reinante estado
de coisas e a imagem do passado cristão. Não houve a possibilidade de diálogo,
uma vez que a crítica herética sonhava voltar a um passado que ficara há muito
para trás. A sua linguagem agressiva não era compreendida ainda que se batesse
pela volta ao estilo de vida de Cristo e dos seus primeiros discípulos, os
Apóstolos. A pobreza, a humildade, a caridade dos primeiros tempos da religião
não era exactamente o que caracterizava a Igreja nos séculos XII e XIII. O
herético recorre ao devaneio místico para fugir desta realidade e construir uma
nova Jerusalém.
E de concreto, a crítica herética pouco pode alcançar, já que
a Igreja, além de actuar em uma sociedade altamente hierarquizada, baseada na
obediência contratual normalmente feita sob juramento, tinha como elemento
auxiliar, no combate à heresia, o braço secular. A natureza da sociedade feudal
cristã conduzia à visão da heresia como quebra da ordem divina e social
alicerçada sobre a fides.
O braço secular não deixou de actuar segundo os ditames de uma sociedade de
guerreiros, que via na heresia uma falta grave, equivalente no plano religioso
à quebra de um juramento de fidelidade do vassalo a seu senhor, de tal modo que
infidelidade social e religiosa se confundem. E, à medida que aumentava o
número de heresias e a sua influência, procurava-se aperfeiçoar os instrumentos
mobilizados para combatê-las». In Nachman Falbel, Heresias Medievais, 1976,
Editora Perspectiva, 2007, ISBN 978-852-730-180-0.
Cortesia de EPerspectiva/JDACT
JDACT, Nachman Falbel, Literatura, Mistérios, Cátaros,