Baviera, 1797
«(…) Mas..., repetiu Koch, tentando ajudar o clérigo a continuar o seu relato. Mas olhou minha letra, sim, olhou minha letra e disse: estupendo, estupendo, o que eu pensava. Estupendo, estupendo, o que eu pensava, repetiu Koch sem tirar os olhos do clérigo. Isso, ele disse isso. Estupendo, estupendo, o que eu pensava. Então me avaliou outro tempinho e, de repente, saiu do aposento, voltou ao final de outro tempinho e me disse: sinto muito, padre, mas acabam de me dizer que o telhado da sua igreja acaba de desabar. Uma desgraça, pensou em voz alta Koch. E como, e como! O senhor poderia jurar, disse com os olhos abertos como pratos o sacerdote. Naquele momento, é claro, eu tentei me levantar, partir, ir embora. O senhor me diga. Com a paróquia em ruínas, que outra coisa eu podia fazer? Koch concordou mas não abriu a boca. Ou o padre estava louco de se internar ou estava prestes a chegar ao cerne da questão. Mas quando tentei me levantar, esse..., esse Lebendig pôs a mão no meu ombro e me disse: padre, eu lhe suplico, escreva alguma coisa. O que for, mas escreva alguma coisa. E o senhor escreveu? Claro..., claro que sim. Não vou esconder. Escrevi. E então..., aí vem o pior... O sacerdote se apoiou na mesa, aproximou o rosto do de Koch e, ao mesmo tempo era que lhe lançava uma baforada de álcool que o policial achou insuportável, disse: ele leu o que eu tinha escrito e disse: o que eu imaginava. O senhor ouviu? Ele disse: o que eu imaginava! Naturalmente, eu aproveitei que ele estava lendo o papel para começar a correr até à minha paróquia... Naturalmente, concordou Koch. Bem, pois cheguei à minha paróquia e o senhor sabe o que estava acontecendo? Não faço a menor ideia, respondeu o policial. Pois nada, disse o clérigo, nada. Nada! A igreja estava como sempre esteve. Sem uma rachadura.
Koch se recostou no espaldar de sua cadeira quando escutou aquelas palavras. Naturalmente, toda a história podia ser falsa, mas, se não fosse, o que ele tinha pela frente exactamente? Uma zombaria com a religião? Não, ninguém tinha perpetrado qualquer escárnio contra Deus, a Virgem nem contra nenhum santo. Uma fraude? Pelo contrário. O padre em questão era quem tinha recebido o dinheiro. Era verdade que a história do tecto da paróquia era falsa, mas isso não podia ser considerado um crime. Noutras circunstâncias, Koch teria prometido ao sacerdote ocupar-se do caso e, acto contínuo, teria tratado de arquivá-lo, mas alguma coisa lhe dizia que o tal Lebendig era uma personagem peculiar, tão peculiar que podia interferir na ordem, impoluta e perfeita, que caracterizava a tranquila cidade de Ingolstadt. Não se preocupe, padre, disse por fim. Dê-me o endereço dessa personagem e eu, pessoalmente, vou-me ocupar de perguntar o que houve. Um sorriso de felicidade paralisou o rosto do clérigo quando ouviu aquelas palavras. Sem dúvida, já estava quase convencido de que ninguém o atenderia. E agora, agora aquele policial tão atencioso, tão ponderado, tão diligente ia lhe dar atenção. Foi embora feliz, risonho, quase entusiasmado. Tanto que resolveu comemorar isso entrando na primeira taberna que cruzou o seu caminho.
Koch não agiu imediatamente. Deixou passar uns dois dias e, finalmente, foi até à casa do tal Lebendig. Ele morava num prédio não muito antigo de uma área quase próspera da cidade. Com apenas algumas varas a mais, a sua casa estaria numa área invejável. De onde se encontrava, tinha apenas que andar alguns minutos para se defrontar com algumas das pessoas mais necessitadas de Ingolstadt. O policial alisou o queixo enquanto corria os olhos pela entrada do prédio, depois respirou fundo e atravessou o umbral. Um cheiro de comida, não exactamente agradável, invadiu as suas narinas enquanto subia os degraus. Não se poderia dizer que a escada estivesse suja, mas Koch teve a sensação de que aquele lugar não contava com toda a limpeza necessária. Era como se os vizinhos não tivessem um interesse especial em manter a dignidade, embora também não se pudesse acusá-los de sujos. Sem deixar de olhar as paredes e os degraus, chegou até ao andar onde o padre tinha dito que aquele estranho indivíduo morava.
Herr Lebendig?,
perguntou quando abriam a porta. Sim, herr,
respondeu a mulher cuja silhueta aparecia no umbral, ao mesmo tempo
em que acompanhava sua breve resposta com um movimento ligeiro de cabeça. Gostaria
de vê-lo, disse Koch num tom correcto, mas que deixava claro que não aceitaria
uma negativa. Espere, bitte,
disse a mulher enquanto fechava a porta. Koch ouviu alguns passos no
interior, suficientemente quietos para afastar a hipótese de que alguém
quisesse fugir à acção da justiça. Ao fim de alguns instantes, a porta voltou a
se abrir, confirmando o seu ponto de vista. Entre, bitte. A
mulher foi na frente, ao longo de um corredor peculiar. Não era estreito demais
e também não estava mal iluminado, mas num dos seus lados estava apoiada uma estante
comprida repleta de livros. Livros! Para que o morador daquela casa podia querer
tantos livros? E, sobretudo, como é que o padre não lhe tinha dito nada a respeito?»
In
César Vidal, O Crime dos Illuminati, 1958, tradução de António Borges, Ediouro
Publicações S.A., 2006, Relume Dumará, 2007, ISBN 978-857-316-491-6.
Cortesia de Relume Dumarã/EdoouroPublicações/JDACT
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