sábado, 12 de setembro de 2020

O Último Cabalista de Lisboa. Richard Zimler. «… e oito fiadas de dez gavetas, baixas e compridas, como as caixas de tipos das oficinas de impressor. A última fiada, em baixo, tem só duas gavetas, onde guardamos as folhas de ouro e o lápis-lazúli»

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A descoberta do manuscrito de Berequias Zarco

«(…) No topo da parede a norte, à altura do pavimento da entrada, uns postigos em ilhó deixavam entrar uma luz suave e pálida. Ao fundo das escadas, que ladeavam a parede a oriente, ficava o círculo do nosso tapete de orações. Em torno dispunham-se sete tufos de plantas verdejantes em vasos de barro, um por cada dia da Criação. Três eram de murta, três de alfazema e o restante, simbolizando o Shabat, era uma mistura dessas duas plantas. A metade da sala além do tapete, virada a poente, era o reino dos nossos trabalhos terrenos, onde tia Ester copiava manuscritos e eu e meu tio os decorávamos com iluminuras. As nossas três escrivaninhas de castanho finamente polido ficavam face à parede a norte, a reduzida distância umas das outras, de modo que podíamos ver o trabalho uns dos outros. Cada um de nós dispunha de uma cadeira de espaldar alto. No lado oposto, face à parede a sul, viam-se dois lavatórios de granito cavados no solo. No meio ficava o tosco armário de carvalho onde guardávamos o material, tinha uns pés em forma de patas de leão e oito fiadas de dez gavetas, baixas e compridas, como as caixas de tipos das oficinas de impressor. A última fiada, em baixo, tem só duas gavetas, onde guardamos as folhas de ouro e o lápis-lazúli.

O que de mais estranho havia na sala, era sem dúvida o espelho redondo, como uma bandeja, colocado na parede, por cima da escrivaninha do meio, onde se sentava meu tio. O espelho, com uma moldura de castanho, possuía uma superfície de prata, côncava, o que tornava achatadas e distorcidas as imagens que reflectia. Costumávamos mirá-lo vezes sem conta ao iniciarmos as nossas meditações, como um meio de libertarmos o espírito da vista habitual, especialmente da imagem familiar do corpo. Este espelho tinha-se tornado de certo modo famoso nas imediações por se dizer que no dia seis de Junho de 1391 da era cristã tinha ressumado sangue pela morte de dezenas de milhares de judeus mortos nas perseguições que então assolavam a Ibéria. A verdade é que o bisavô Abraão sustentava que o espelho vertia uma ínfima lágrima de sangue, invisível ao olhar, sempre que um único judeu morria. Acreditava que o sangue se tinha tornado visível na época das perseguições contra os judeus por então terem matado tantos dos nossos. Foi assim que desde então passaram a chamá-lo o espelho que sangra.

Todos esperávamos que nunca mais tivesse ocasião de nos revelar os seus poderes. Precisava que mijasses, disse meu tio, encaminhando-me para os lavatórios no chão. Agora?, perguntei. Aqui, disse, pegando numa infusa que estava à beira da bacia. É Primavera. Preciso do mijo de alguém virgem. Todos os anos, exactamente antes da Páscoa, meu mestre fabricava novos corantes e tintas para as nossas iluminuras. O ácido da urina, ao atacar certos elementos criava cores diferentes, em especial um rosa finíssimo, quando se misturava com pau-brasil, alúmen e alvaiade, e um carmim brilhante se combinado com cinzas de videira e cal viva. Há muito que deixei de ser virgem, disse eu, enquanto a imagem de Helena se tornava presente tal como a vira nas colinas que dominam o grande convento em construção a ocidente de Lisboa. Tinha esperado tão longamente pela sua decisão! Até quase pensar que o amor e a vida seriam para mim diferentes do que eram para os demais. E de um momento para o outro, quando tudo parecia perdido e o barco que a deveria levar para Corfu estava já ancorado em Lisboa, os braços dela abriram-se para mim como os portões da graça de Deus. Alguma barregã na Estalagem da Flor da Rapariga?, perguntou meu tio, despertando-me do meu devaneio. Vezes sem conta tinha-me recomendado uma casa de má nota fora das muralhas da cidade. Assim que respondi Helena, levantou as sobrancelhas numa expressão maliciosa: seja como for, és o que posso arranjar de mais parecido com alguém virgem, sem ter de revelar que continuamos a fazer iluminuras de livros hebraicos, judas é ainda pequeno, eu demasiado velho e a urina das mulheres é forte de mais, especialmente a de tua tia. Usei-a há muitos anos quando nos casámos: ficou tudo preto como a alma de Asmodeu. Trocámos um sorriso de troça. Agora percebo porque esteve a encher-me de líquidos, disse eu. Enquanto as minhas águas jorravam quentes e espumosas nos jarros, meu tio dirigiu-se para as escrivaninhas no passo bamboleante que costumava adoptar nas sinagogas e começou a espanejá-las. Depois de ter urinado em seis dos jarros de barro e de os ter tapado cuidadosamente, coloquei-os nos lavatórios. Meu tio lavou as mãos e sacudiu-as para o tufo de murta e alfazema do Shabat». In Richard Zimler, O Último Cabalista de Lisboa, 1996, Quetzal Editores, Lisboa, ISBN 978-972-004-491-4.

Cortesia de QuetzalE/JDACT

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