«(…) Neste mesmo instante, Teresa é Isabel, recebendo o beijo de João da boca de Filipe. Mas não é João nem Filipe nem sequer Radar quem agora a descobre. Este fantasma chama-se Teresa! O grito da vitória vem de Cláudia. O jogo recomeça, Teresa treme de pavor, para dizer a verdade odeia andar ali entre túmulos, está sempre a pensar que vai tropeçar e cair e tornar-se ridícula. Concentra-se, mas é difícil achar o cheiro de João naquela terra húmida, confunde-o com os outros, ainda agora agarra nas mãos do Linhos e desata a tremer, percorre-lhe devagar os braços e o peito, o nariz e os olhos, dedo a dedo, toca-lhe os lábios e sussurra: João. O Linhos fica feliz, por uma vez tomaram-no por um homem como os outros, se ao menos Deus Nosso Senhor lhe concedesse a voz de João, por um segundo, só para ele poder dizer que sim. Vê-se obrigado a berrar Querias!, Ricardo faz Schiu, ainda acordam a mortandade!, Teresa volta a contar até trinta e depois, que remédio, acaba por identificar Cláudia. Mas hoje Cláudia não corre, leve e eficiente, como de costume. Demora-se e afasta-se cada vez mais para os confins do cemitério, onde nunca ninguém se esconde. Há entre eles um acordo tácito de susto que delimita a área do jogo. Para lá do primeiro quarteirão é campo implicitamente proibido. Esta noite Cláudia passa a fronteira dos jazigos de família, avançando às cegas, perdido o medo e a coragem dele, perdida a bússola brilhante e a certeza dos passos, perdido tudo o que não seja o aroma a rosas queimadas em álcool e terra molhada. Parecia sonâmbula. Talvez fosse isso. Talvez o objecto áspero em que o pé de Cláudia bateu não fosse mais do que uma alucinação. Mas ela juraria que o objecto se ergueu de um pulo e correu com todas as forças para longe dali. Não sabia como é que tinha ido parar justamente àquele sítio. Lembrava-se apenas de um embate e de um corpo fugindo pela noite, a resfolegar.
Enquanto o ciclo de cinema pornográfico decorria à porta fechada na sala de Ricardo Luz, as donzelas cavaqueavam na varanda. Mas Cláudia estava cada vez menos pelos ajustes, e incitava à rebelião. Começou por declarar que sentia um frio desgraçado e que aquela cambada de tarados sexuais não tinha o direito de as deixar ali especadas a tarde inteira, capazes até de apanharem alguma gripe. A Isabel ainda puxou dos berlindes que trazia no bolso, numa tentativa de conciliação. Cláudia ficou danada e pôs-se a clamar contra a submissão feminina: esta agora anda-me de berlindes para se entreter, onde é que já se viu. Clamou tanto que a cabeça do Radar acabou por aparecer do lado de lá do vidro, entre as cortinas, com as sobrancelhas franzidas e um dedo à frente da boca. Cláudia pôs-se a abanar a porta e a despejar palavrões. A cabeça eclipsou-se, mas Cláudia teimava furiosamente na porta e no discurso metafórico. Então deixou de se ouvir o ruído compassado da máquina de projecção, e Ricardo Luz surgiu de rompante. Isabel começou a roer as unhas e Teresa pôs-se a olhar para a rua com toda a atenção, como se a gritaria não existisse.
Aliás,
foi tudo muito rápido. De repente, Cláudia já tinha proclamado a igualdade de
direitos das mulheres, Ricardo Luz já tinha tentado beijá-la e logrado
esbofeteá-la, e agora ela ali estava, muito digna, ainda a sacudir da mão a dor
da bofetada de resposta: então, meninas, vão continuar presas neste galinheiro
ou vêm comigo? Teresa pediu-lhe que se acalmasse. Isabel limitou-se a corar
tudo o que podia, e era muito. Quando Cláudia saiu feita furacão, juntaram-se
as duas a segredar, preocupadas, acerca da saúde mental dela e do que iria
acontecer a seguir. Os rapazes sorriam-lhes e abriam uma cerveja para Ricardo
Luz. Queres beber qualquer coisa, Isabelinha? E a Teresoca, também não? Então
até já, bonequinhas. Isabel fez-se outra vez vermelha, e pensou duas coisas:
primeiro, Filipe fica tão ridículo quando se esforça para ser bonzinho; segundo,
Ricardo às vezes é um bocado parvo. Teresa não se fez vermelha, e só pensou que
a Isabel e a Cláudia eram as pessoas mais felizes do mundo.
Às vezes cresce-se para trás, para
o sítio onde se guarda a infância, iluminada pelas luzes trémulas das
experiências que depois vieram. Cláudia passeava pelos prédios em construção.
Adorava trepar pelos andaimes, subir até lá acima e ficar sentada sobre uma
tábua estreitíssima a olhar para a rua». In Inês Pedrosa, A Instrução dos Amantes, Publicações
dom Quixote, 1997, ISBN 978-972-200-972-0.
Cortesia
de PdomQuixote/JDACT
JDACT,
Inês Pedrosa, Literatura, A Arte,