sábado, 5 de setembro de 2020

Vingança em Paris. Steve Berry. «Viera desvendar um mistério que havia torturado caçadores de tesouros por mais de sessenta anos e detestava atrasos. Ouviu passos vindos de uma escadaria próxima…»

Cortesia de wikipedia e jdact

Bastia. Córsega

«(…) Pousou o olhar sobre o Jetée du Dragon, um cais artificial que existia havia poucas décadas. Para construí-lo, os engenheiros tinham destruído um rochedo gigante, em forma de leão, chamado Il Leone, que bloqueava o porto e havia figurado proeminentemente em várias gravuras pré-século XX. Duas horas antes, enquanto o Archimedes adentrava a área de águas protegidas, avistara a torre de menagem do castelo, construída pelos governantes genoveses do século XIV, sobre a qual estava agora, às escuras, e perguntara-se se aquela noite seria a noite. Esperava que sim. Córsega não estava entre os seus lugares predilectos. Não era nada além de uma montanha que brotava do mar. Com 185 quilómetros de comprimento, 83 de largura, 14.244 quilómetros quadrados e 965 quilómetros de costa. A geografia variava de picos alpinos a desfiladeiros profundos, florestas de eucalipto, lagos glaciais, pastos, vales férteis e até algum deserto. Em épocas distintas, gregos, cartagineses, romanos, aragoneses, italianos, britânicos e franceses a haviam conquistado, mas sem jamais conseguir subjugar o espírito rebelde da ilha. Outro motivo pelo qual desistira de investimentos: havia inconstância demais nesse département francês rebelde.

Os industriosos genoveses fundaram Bastia em 1380 e construíram fortalezas para protegê-la, a torre onde ele se encontrava era uma das únicas restantes. A cidade fora capital da ilha até 1791, quando Napoleão decidiu que seu local de nascimento, Ajaccio, ao sul, seria a melhor opção. Ele sabia que os habitantes ainda não tinham perdoado o pequeno imperador por essa transgressão. Abotoou o sobretudo Armani e colocou-se próximo a um parapeito medieval. A camisa sob medida, as calças e o suéter colavam-se ao corpo de 58 anos, dando-lhe um sentimento tranquilizador de confiança. Comprara o conjunto na Kingston & Knight, à moda do seu pai e do avô. No dia anterior, em Londres, o barbeiro havia passado meia hora aparando a sua juba grisalha, eliminando as ondas descoradas que o faziam parecer mais velho, linha orgulho do modo como mantinha a aparência e o vigor de alguém mais jovem e, enquanto continuava a olhar para o Mar Tirreno no horizonte, para além de uma Bastia envolta em escuridão, saboreou a satisfação de ser um homem que tinha chegado a algum lugar. Olhou para o relógio de pulso.

Viera desvendar um mistério que havia torturado caçadores de tesouros por mais de sessenta anos e detestava atrasos. Ouviu passos vindos de uma escadaria próxima, que se erguia a 20 metros de altura. Durante o dia, turistas tolos subiam para admirar o cenário e tirar fotos. Àquela hora, não havia visitantes. Um homem surgiu no meio à luz ténue. Era pequeno e tinha uma cabeleira vasta e volumosa. Duas linhas profundas marcavam-lhe o rosto, como cortes que iam das narinas até a boca. A pele era morena, num tom semelhante ao de uma casca de noz, a pigmentação escura acentuada por um bigode branco. E estava vestido de padre. Ao se aproximar, os saiotes negros farfalharam. Lorde Ashby. Minhas desculpas pelo atraso, mas foi inevitável. Um padre?, perguntou, apontando para a batina. Achei que seria o melhor disfarce para esta noite. Não instiga muitas perguntas. O homem inspirou algumas vezes, ainda sem fôlego devido à subida. Ashby escolhera o horário cuidadosamente e cronometrara a sua chegada com precisão britânica. Mas a programação agora estava atrasada em cerca de meia hora. Detesto aborrecimentos, disse, mas, às vezes, uma discussão franca, cara a cara, faz-se necessária. Apontando-lhe um dedo, continuou: o senhor é um mentiroso! Sou sim. Admito-o sem ressalvas. E custa-me tempo e dinheiro, duas despesas dispensáveis. Infelizmente, lorde Ashby, encontro-me em escassez de ambos, fez uma pausa. E sabia que o senhor precisava da minha ajuda. Da última vez, deixara que o homem soubesse demais. Um erro.

Algo havia acontecido em Córsega em 15 de Setembro de 1943. Seis caixotes foram trazidos do oeste, da Itália, de barco. Alguns diziam que haviam sido jogados ao mar, próximo a Bastia; outros acreditavam que foram levados até à praia. Os relatos eram unânimes quanto à participação de cinco alemães. Quatro deles submetidos à corte marcial por deixarem o tesouro num local que viria a cair nas mãos dos aliados e, por isso, executados. O quinto fora exonerado. Infelizmente, não estava a par do esconderijo final, portanto procurara-o em vão pelo resto da vida. Como diversos outros. Mentiras são as únicas armas de que disponho, esclareceu o corso. São o que mantém homens poderosos como o senhor em xeque. Senhor... Atrevo-me a dizer que não sou muito mais velho do que o senhor. Embora não tenha uma fama tão ruim. Sua reputação é notável, lorde Ashby. Ele assentiu, concordando com a observação. Compreendia o que a imagem era capaz de fazer para, e por, uma pessoa. Por três séculos, sua família possuíra o controle da maioria das acções de uma das instituições de empréstimos mais antigas da Inglaterra. Era, agora, o único dono daquele legado. A imprensa britânica certa vez descrevera seus luminosos olhos cinzentos, seu nariz romano e seu sorriso contido como o semblante de um aristocrata. Um repórter, poucos anos antes, classificara-o como imponente, enquanto outro o descrevera como moreno e saturnino. A referência ao seu tom de pele, a ele conferido pela descendência turca da sua mãe, não chegava a incomodá-lo, mas o mesmo não poderia ser dito quanto a ser considerado taciturno e sombrio». In Steve Berry, Vingança em Paris, 2011, Livros d’Hoje, 2012, ISBN 978-972-204-916-0.

Cortesia de Ld’Hoje/JDACT

JDACT, Steve Berry, Literatura,