A Chegada da Inquisição (maldita) 1490-1491
Zarita
«(…) Quando, porém, me ajoelhei à
sua frente para descansar a cabeça no seu colo, ele se levantou abruptamente e
deixou a sala. Lembre-se, homem, que és pó, e ao pó voltarás...
Parámos diante da entrada da
tumba, e notei que havia ali outra pessoa que não se dirigira a mim nem me
dissera qualquer palavra gentil desde o dia da minha perda. Ramón Salazar
estava parado ao lado. Tentei atrair a atenção dele, mas seu olhar movimentava-se
por entre o grupo de mulheres. Imaginei que ele não conseguia olhar para mim
porque lhe seria doloroso ver-me aflita. Seu rosto exibia uma adequada expressão
sombria. Contudo não pude deixar de notar que ele vestia um gibão bordado novo
em folha com plissado pespontado ao estilo italiano. Era do mais escuro veludo
e encimado por uma gola enrugada de renda branca, e fiquei imaginando se ele não
o mandara fazer especialmente para a ocasião e escolhera o estilo para destacar
as aristocráticas linhas angulares de seu rosto. De repente, senti a necessidade
do calor de um homem, em particular daquele homem que frequentemente confessara
seu amor eterno por mim. Desejava sua proximidade e almejava ter a sua força
para me apoiar. Impulsivamente, caminhei na sua direcção. Ele me olhou de
relance e então examinou minha aparência mais detidamente, e percebi um
vislumbre de leve desdém em seu rosto. Agarrei-o e tentei pousar a cabeça no
seu peito. Ele deu um pequeno passo para trás.
Menos de uma semana atrás, Ramón
teria procurado qualquer desculpa para me envolver nos seus braços, mas agora
ele me fizera um afago e deixara os braços caírem pelas laterais. Eu era tão
feia assim em minha dor? Eu sabia que meus olhos estavam vermelhos de chorar,
as faces manchadas, a mantilha torta por eu ter puxado e coçado o cabelo. Ardelia
atraiu-me delicadamente para si. Que bandos de anjos a conduzam ao Paraíso... Chegara
a hora do sepultamento. Os familiares próximos entraram no mausoléu. O cheiro
de morte penetrou minhas narinas. As luzes bruxuleavam nas paredes. Que lhe
seja concedido o descanso eterno, Ó Senhor. Descanso eterno. Eterno. Para
sempre. Eu nunca mais veria a mãe novamente. Meus sentidos pareceram flutuar, e
um barulho atordoador percorreu minha cabeça.
Então um braço forte estava nas
minhas costas e dedos me apoiavam pelo cotovelo. Por um segundo vertiginoso
pensei que fosse Ramón vindo em meu auxílio. Mas era tia Beatriz que estava a
meu lado. Zarita, falou com firmeza no meu ouvido, comporte-se com dignidade. Sua
mãe teria desejado isso. Mordi o lábio com força suficiente para sentir gosto
de sangue. Endireitei-me e ergui bem alto a cabeça. No meu outro lado Ardelia
apertou com a sua enorme mão a minha e sussurrou palavras de encorajamento no
meu ouvido. Enterraram mãe com o bebê que ela dera à luz; o bebé menino pelo
qual meu papa ansiava tão desesperadamente para que seguisse seus passos,
cuidasse da fazenda, fosse um orgulhoso proprietário de terras como ele e
perpetuasse o seu nome. Depois da cerimónia, pai estava exausto; retirou-se
para o seu quarto assim que voltámos do cemitério. Fui deixada para cuidar dos
enlutados que tinham aceitado a oferta de comida e bebida em nossa casa. Ramón
estava presente, mas não ficou ao meu lado, como deveria ter feito, para me
ajudar a cumprimentar e depois agradecer aos convidados por terem comparecido para
apresentar as suas condolências. Minha tia Beatriz foi embora mais ou menos uma
hora depois. Ela me abraçou e me beijou.
Perder a mãe é uma dor
esmagadora, Zarita. Saiba que compartilho o seu pesar e que isso lhe sirva de
consolo. Eu amava minha irmã, pois ela era linda tanto de aparência quanto de
carácter. Ela se foi..., esperemos que para um lugar melhor do que este. Tia
Beatriz fez o sinal da cruz em mim, tocando-me a testa, o coração e através do
peito. Cada pessoa sobre esta terra tem seu próprio Calvário para escalar, Zarita.
Só posso dar-lhe um pequeno conselho. Faça como sua mãe teria feito. Continue o
trabalho dela. Seja activa nos seus actos de caridade. Tenha interesse naqueles
dentre nós que nada têm. Pense se há pessoas que podem precisar da sua ajuda.
Talvez você nem saiba quem são. Cabe a você encontrar tempo para procurá-las. As
palavras de minha tia permaneciam em minha mente quando comecei a acender os
lampiões contra a escuridão. Todos tinham ido embora, menos Ramón Salazar, que
estava afundado numa poltrona junto à janela, um cálice pendendo da sua mão.
Seu belo rosto estava afogueado de tanto vinho e me lembrei de como tínhamos
sido felizes havia menos de dois ou três dias. Uma repentina lembrança do mendigo
na igreja me surgiu, junto a outro pensamento. Fui até lá, sentei-me na poltrona
defronte a Ramón e lhe perguntei se ele se lembrava das palavras que o homem
pronunciara. Ramón, porém, não queria se lembrar daquele dia. Tentou contornar
minha pergunta e relutou em manter uma conversa sobre o incidente. Mesmo assim,
insisti: a vergonha por minha falta de caridade para com o mendigo, que causara
a sua execução, me fazia falar. Ele mencionou uma esposa, comentei. O quê? Ramón
bebeu mais um pouco do cálice de vinho. Suas palavras eram indistintas. Quem
tem uma esposa? O mendigo, repeti. Quando me pediu uma moeda na igreja, ele
mencionou que sua esposa estava doente e que poderia morrer. E daí? Ramón
bocejou. Eu estive pensando, falei bem baixinho, o que terá acontecido com ela?»
In
Theresa Breslin, Prisioneira da Inquisição, 2010, Galera Record,
2014-2015, ISBN 978-850-110-256-0.
Cortesia de GRecord/JDACT
JDACT, Theresa Breslin, Literatura, Espanha,