domingo, 13 de setembro de 2020

A Mentira Sagrada. Luís Miguel Rocha. «Tarcísio sentou-se ao seu lado. Estavam no seu gabinete, o que para Schmidt era uma novidade, nunca ali havia entrado»

Cortesia de wikipedia e jdact

Vaticano. 19 de Abril de 2005

«(…) Sarah e o clérigo não trocaram uma palavra. Ela preferia assim e era um favor que fazia à sua escolta a quem o silêncio também agradava. Cumpria as ordens escrupulosamente e não desejava ser interrogado sobre coisas que não devia, ou não podia, mencionar. Saíram para o exterior. Estava frio, mas não desagradável. Tolerava-se. Pensava em Rafael. Seria ele quem a convocara? Não podia ser mais ninguém. Por essa razão estava tão despreocupada. Não era suficientemente importante para despertar o interesse de jovens clérigos mudos. O carro estava em frente ao hotel, ao fundo das escadas. Um Mercedes de vidros fumados. O jovem padre abriu a porta do veículo e Sarah olhou para o interior. O queixo caiu-lhe. Dentro, confortavelmente sentado, a saborear um charuto, um homem de vestes escarlates, cruz de ouro a pender no peito, segurava no colo a calota cardinalícia. Boa noite, Sarah Monteiro, cumprimentou.

As conversas entre amigos são contínuas. Ainda que fiquem anos apartados retomam-nas sempre no ponto em que ficaram, empenhando a experiência adquirida no entretanto. As grandes amizades não carecem de comunicação constante e ininterrupta, podem mesmo não dizer nada um ao outro entre encontros que quando se tornam a ver a sensação é a de que se tinham visto no dia anterior. O dia anterior em certas amizades podia ter sido há três anos e meio. Hans Schmidt e Tarcísio fruíam desse género de amizade. Um abraço apertado seguiu-se ao cumprimento entre as mãos direitas. Depois dois beijos. Tarcísio deixou os olhos encherem-se de lágrimas, mas nenhuma se atreveu a descer pelo rosto. Schmidt não chegou a tanto, mas isso não queria dizer que não tivesse saudades do amigo, simplesmente mostrava menos. Daí que sempre tenha sido chamado de Austrian Eis. Como estás, meu querido?, perguntou Tarcísio com um sorriso. Como Deus quer, respondeu o austríaco fitando o piemontês. Senta-te, senta-te, pediu Tarcísio, apontando para um sofá de couro castanho com décadas. Deves estar cansado. Fizeste boa viagem? Muito agradável, disse Schmidt, acatando a oferta de Tarcísio e deixando o corpo repousar no sofá. Cruzou a perna. Sem atrasos, sem percalços.

Tarcísio sentou-se ao seu lado. Estavam no seu gabinete, o que para Schmidt era uma novidade, nunca ali havia entrado. Muito espaçoso, uma grande secretária de carvalho junto a uma das amplas janelas que estavam fechadas a separá-los da noite romana. O silêncio instalou-se constrangedor. Os cartuchos da conversa circunstancial estavam quase esgotados. Jantaste? Queres comer alguma coisa?, ofereceu Tarcísio. Estou bem, Tarcísio, obrigado. Schmidt sempre fora muito frívolo. Raramente sentia fome, por vezes, nos tempos em que estava colocado em Roma, parecia-lhe há séculos, esquecia-se de comer. Chegou a desmaiar de fraqueza por causa disso. O austríaco era obstinado e dedicava-se com afinco à tarefa ou tarefas que lhe tivessem sido imputadas, fosse nos estudos ou, posteriormente, nas funções pastorais. Durante alguns anos esteve arredado dessas funções que lhe davam tanto prazer, auxiliando Tarcísio com deveres mais administrativos e episcopais que entendia serem necessários, mas não o preenchiam. Fosse como fosse, gostasse ou não, sempre as executou com muita proficiência. Tarcísio tinha um enorme apreço pelo homem e pelo clérigo e, um ainda maior, pelo amigo. Vamos falar do teu problema?, inquiriu Schmidt. A sua abordagem aos problemas era simples e directa, não os evitava, nem lhes virava as costas, se existiam tinham de ser solucionados imediatamente para não avassalarem sobre nós mais tarde. Deus protegia os audazes». In Luís Miguel Rocha, A Mentira Sagrada, Porto Editora, 2011, ISBN 978-972-004-325-2.

Cortesia de PEditora/JDACT

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