Inquisição (maldita). Viena
«Maio finalmente chegou, após um
longo e gélido Inverno, e um início de Primavera não menos húmido e frio. Com
os primeiros raios de sol, os jardineiros ao serviço do imperador austro-húngaro,
destaparam os canteiros e replantaram as rosas que nos meses seguintes iriam encher
o complexo palaciano do Hofburgo com centenas de cores. O movimento nos jardins
era intenso, como don Felipe testemunhava ao olhar pela janela do quarto do último
andar do palácio imperial de Viena, pertencente ao seu tio, don Fernando de Áustria.
Viera com o firme propósito de conquistar aliados e fazer chegar mensagens a todos
os cantos do sacro-império para unir as legiões de Cristo. Passara os últimos meses
melancólico e apagado, depois do seu afastamento do trono das Espanhas e agora,
o que pretendia, era convencer o imperador e o papa a esquecerem as suas diferenças
para juntos se lançarem numa cruzada à reconquista da Península Ibérica.
Para don Fernando, o propósito do
sobrinho precisava ser adiado, ser adiado, dada a assinatura do acordo de paz com
os príncipes alemães, que garantia o sossego do império dentro das suas próprias
fronteiras. Para o imperador, havia ainda uma razão pessoal para não aceitar os
pedidos insistentes de don Felipe: a sua filha, a infanta dona Maria, regente
do reino de Aragão, mostrava-se pouco favorável a um entendimento com o que restava
do poder do primo nas Espanhas, mantendo uma posição neutra face ao crescente poder
dos portugueses na Península Ibérica. A história europeia que se tinha escusado
a aprender enquanto jovem, parecia agora troçar de don Felipe. Fizera de tudo para
aumentar o seu império à maneira dos Áustria: casara com a filha dos reis de Portugal,
dona Maria Manuela, enviuvando logo aquando do nascimento do seu herdeiro, don
Carlos e depois casara com Maria Tudor de Inglaterra, sua outra prima, cuja
união acabaria por provocar a sua derrota, anos depois no canal inglês.
Se Inglaterra constituía para don
Felipe uma má memória, Portugal simbolizava um objectivo falhado, tanto pelo casamento,
como pela ineficácia dos mercenários árabes em capturar dom Sebastião, rei de Portugal,
seu sobrinho, que de forma tão inteligente lhe roubara o trono, depois de escapar
à armadilha de Alcácer-Quibir. Enquanto o sol subia, inundando de luz o palácio
imperial de Viena, don Felipe caiu desamparado na cadeira atrás de si, com uma dor
bastante forte nos joelhos, deixando antever a proximidade de mais um ataque de
gota. A missa ia, contudo, começar na capela real dentro de cinco minutos, pelo
que, quando procurava reunir as forças necessárias para se levantar, alguém
bateu levemente na porta do seu quarto.
Na capela imperial do Hofburgo, o
padre preparava-se para o serviço do dia. Don Felipe sentou-se na última fila de
cadeiras, onde já o aguardava Guilhermo Eanez, mas para evitar o embaraço da conversa
com o seu antigo embaixador e agora seu secretário pessoal, agarrou rapidamente
no terço e murmurou uma oração. O imperador don Fernando e o seu filho Maximiliano
sentavam-se nos lugares próximos do padre e, mais atrás, don Juan de Áustria, o
irmão bastardo de don Felipe, alguns anos mais novo, trocava palavras com um
homem sentado ao seu lado, paramentado como um bispo. No final da missa, don Juan
dirigiu-se a don Felipe antes que este se retirasse para os seus aposentos, como
cada vez se tornava mais habitual. Irmão, quero apresentar-vos o bispo don Martin
de Utreque, que viajou comigo desde a capital flamenga para vos visitar. Senhor
bispo, sinto-me honrado por vos conhecer. Don Felipe lisonjeava o homem,
entendendo que devia ter urna posição elevada na hierarquia religiosa». In Ricardo
Costa Correia, O Regresso do Desejado, 2019, EGO Editora, 2019, ISBN
978-108-871-222-1.
DACT, Ricardo Costa Correia, Literatura, Espanha, Alcácer-Quibir,