Assis. 25 de Março de 1230
«A penumbra da entrada e o som agora abafado da confusão do lado de fora da igreja apaziguaram os seus nervos. Correu os olhos ao redor e viu o rosto pálido do castelão, o desdém franzindo os lábios do mercador, o maxilar contraído do prefeito, e perguntou-se por que cada uma dessas pessoas se teria envolvido naquele sacrilégio. Suspeitava que o comerciante haveria de ficar leito em vender as relíquias, um por um dos ossos santificados, apesar de serem os restos mortais de seu único irmão. Uma voz soou, vinda do fundo da nave central: rápido; tragam o caixão para cá.
Dois frades, o mestre construtor frei Elias e seu lacaio, esperavam em cada lado do altar principal. Um círculo de tochas queimava nos seus suportes, atrás deles, fazendo com que Simone se lembrasse da maldição sobre o fogo do inferno lançada pelo bispo. A luz das tochas projectava a sombra de frei Elias dentro da igreja, tornando-o muitíssimo maior do que o franzino conspirador que tramara o roubo. O calor afogueou o rosto do cavaleiro, apesar do vento gelado que percorria a igreja. Ficou imaginando, se Elias poderia absolvê-lo antes de saírem, ainda que o frade fosse o seu parceiro nesse pecado. Apavorava-lhe a ideia de encarar a multidão que o esperava do lado de tora lendo sua alma em pecado mortal.
Ao
chegarem na parte da frente da nave, os quatro homens encontraram o altar-mor
deslocado da sua base e uma profunda escavação na rocha abaixo dela. Os homens
prenderam o caixão em cordas paralelas ao buraco e, com a ajuda dos frades,
abaixaram-no até dentro do sarcófago. Jogaram as cordas sobre o caixão. Então,
Elias girou uma das colunas em miniatura, ricamente ornadas, que ficavam na
parte traseira do altar, até se ouvir um ruído seco. O bloco maciço moveu-se,
rangendo devido à pesada rotação que fazia sobre o buraco. Finalmente, o frade
limpou com os pés a poeira que se juntara ao redor da base de mármore,
alisando-a depois com a sola da sandália para não parecer que tinha sido
tocada. Ontem, os operários começaram a aplicar os ladrilhos no chão da abside,
explicou. Vão cobrir esta área amanhã. Não haverá nenhum vestígio. Ninguém
saberá onde ele descansa. Dobrou um joelho junto ao altar, inclinando a cabeça
vagamente na direcção do sarcófago. Nenhum vestígio, padre Francesco, repetiu,
num sussurro satisfeito.
Vosso segredo permanece
convosco. Simone recordou-se da reunião no palácio de Giancarlo, quando o
próprio frade Elias argumentara que o corpo deveria ser escondido, até mesmo
dos fiéis, protegê-lo dos caçadores de relíquias. Havia duvidado das intenções
do homem desde o começo. De acordo com a interpretação do cavaleiro, Elias
ainda fervia de raiva devido à eleição que perdera depois da morte de São
Francisco. A irmandade havia nomeado outro frade para suceder ao santo na
função de ministro geral da Ordem; um homem de mais idade, piedoso, porém com
menos capacidade administrativa que o dedo mindinho de Elias. Fosse como fosse,
Elias resolveu tirar vantagem da derrota quando o papa lhe pediu para que se
encarregasse pessoalmente da construção da basílica. Agora, ele usara o seu prémio
de consolação contra seus detractores e escondera a mais preciosa relíquia da
Ordem onde jamais seria encontrada. Da próxima vez, os irmãos pensariam duas
vezes antes de votarem contra ele. Depois de aplainar a área ao redor do altar,
Elias fez sinal para o lacaio: frei Illuminato, vá buscar a urna. O rapazote
desapareceu, encoberto pelas sombras do transepto. Ao voltar, minutos depois,
trazia um pequeno relicário de ouro. Elias suspendeu a tampa e retirou do
interior um anel com uma pedra azul-clara entalhada. Enfiou-o no dedo enquanto
seu auxiliar distribuía anéis idênticos aos outros. Neste dia está formada a Compari della Tomba, a
Fraternidade da Tumba, disse Elias. Vamos fazer o juramento, sob pena de morte,
de jamais revelar o local onde os ossos estão enterrados. E, igualmente, jurar
de morte qualquer um que descubra o esconderijo por acaso, acrescentou
Giancarlo, severo. Deus é nossa testemunha. Deus é nossa testemunha, repetiram
os outros. Levantaram as mãos com os anéis à luz dos archotes e juntaram-nas.
Cada um segurou com firmeza o punho do que estava ao lado. Amém! Assim seja!,
exclamaram em uníssono.
O Grifo. Festa de São Remígio. 1 de Outubro de 1271
Frei
Conrad franziu a testa, intrigado, ao chegar ao topo da trilha que
ziguezagueava até à sua cabana. O esquilo, agitando a cauda e guinchando no
parapeito da janela, indicava que havia um visitante lá dentro, alguém que não
era o criado de Rosanna. Quieto, Irmão Cinzento!, ralhou, deixando cair o feixe
de lenha que trazia ao ombro. Dê ao estranho as boas-vindas que daria a mim.
Ele pode ser um dos anjos do Senhor. O eremita envolveu o esquilo nas suas mãos
e depois o soltou com leveza sobre o tronco escuro de um pinheiro que ficava
logo adiante. O animal subiu para um galho mais alto enquanto Conrad entrava
pela porta. Sem se incomodar com a conversa, o visitante, um frade, dormia com
a cabeça aninhada sobre a mesa do eremita, o rosto escondido sob o capuz. Conrad
resmungou baixinho, satisfeito. Se tivesse de ser sociável e conversar, pelo
menos o assunto seria espiritual. As sandálias de couro e a batina nova, de um
cinza cor de rato, que o seu hóspede usava não lhe agradaram tanto. Provavelmente
era um Conventual, um daqueles frades mimados cuja vida estava mais próxima dos
monges negros enclausurados do que de um filho de São Francisco desenraizado.
Torceu para que a conversa não acabasse na velha discussão sobre a essência da
verdadeira pobreza. Estava cansado e desconfiado daquele assunto; não lhe havia
trazido nada além de sofrimento». In John Sack, A Conspiração
Franciscana, 2005, Edição O Quinto Selo, 2006, ISBN 978-989-613-048-0.
Cortesia de EQuintoSelo/JDACT
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