«(…) Já no século XI, a Igreja começou a tomar medidas mais enérgicas, em especial com relação aos cátaros que nessa época começavam a difundir intensamente as suas doutrinas. Mesmo assim ainda hesitava em adoptar providências mais extremas, pois dificilmente elas poderiam harmonizar-se com a caridade tão apregoada pelo cristianismo. O impulso para a radicalização da atitude social contra os heréticos partiu de baixo para cima, ou seja, do fanatismo popular que tomava corpo à medida que se cristianizava a sociedade bárbaro-europeia. Mesmo no ano de 1045, quando foram descobertos alguns heréticos em Chálons, as autoridades eclesiásticas recorreram aos legisladores pois ainda não sabiam o que fazer com eles. A ausência de uma legislação precisa fazia com que os heréticos fossem tratados ora com clemência, ora com excessivo rigor. Quando a população de Colónia queimou certo número de cátaros em 1145, São Bernardo de Clairvaux recriminou os actos da multidão, embora tivesse aprovado o seu zelo religioso, argumentando que a fé devia ser defendida pela persuasão e não pela violência. Com o passar do tempo, a Igreja lançou a excomunhão como meio de induzir o poder secular a participar da perseguição e do combate à heresia. Nesse sentido, o Concilio de Verona de 1148 estabeleceu que os soberanos deveriam empenhar-se, ao lado da lei civil e canónica, para o seu extermínio, sob ameaça de excomunhão. São Bernardo não foi a única voz a se levantar; outra personalidade da época, Gerhoh de Reichersberg, também condenou em alta voz a conversão forçada.
A violência do braço secular contra a heresia parece ter crescido em proporção à sua difusão e influência nas camadas da população medieval. Pedro de Aragão, em 1197, introduziu no Código Civil a condenação do herético através da punição pelo fogo que, mais tarde, faria parte do arsenal de armas para o seu combate. Frederico II, no estatuto de 1220, incluiu a perseguição aos heréticos, a seguir agregada ao direito público europeu. O estatuto previa o confisco dos bens e a colocação dos acusados fora da lei, o que equivalia à pena de morte. Em 1231, Frederico II inclui na Constituição da Sicília a pena drástica da fogueira. Mas o Imperador Hohenstaufen não foi o único a tomar tal atitude em relação aos heréticos daquele tempo, pois o doge de Veneza, em 1249, antes de ascender ao cargo, jurou queimar todos os heréticos de sua região. A prática de mandar à fogueira os heréticos era geral na época e não surgiu com a criação da lei positiva, baseada no costume popular, e que acabou sendo incorporado pelos legisladores com o decorrer do tempo. Essas punições podem ter uma origem longínqua, remontando à legislação de Diocleciano que as estabeleceu durante a sua luta contra os maniqueus bem como contra os cristãos, perseguidos cruelmente pelo imperador romano. É possível explicar a crueldade das perseguições aos heréticos pelo facto da heresia ser considerada o maior dos delitos e, em consequência, o castigo deveria ser terrível e sensacional para servir de exemplo aos demais.
A Igreja procurou justificar tais punições buscando um apoio
exegético nas Escrituras Sagradas.
Todos esses elementos estavam preparando o caminho para o futuro surgimento
de uma instituição que tratasse especificamente da identificação e da
perseguição dos heréticos. Assim, a Inquisição (maldita)
surgiu no cenário da história do século XIII para tornar-se uma instituição de
temor bem marcante. Os abusos cometidos na perseguição aos heréticos, bem como
as pressões exercidas sobre eles, forçaram a institucionalização das formas de
repressão, embora exageros e execuções em massa tivessem sido praticados por um
papa como Inocêncio III na Cruzada contra os albigenses em 1208. A Gregório IX
devemos a organização do tribunal inquisitorial e, em 1229, no Concílio de
Toulouse, foi criado oficialmente o Tribunal do Santo Ofício (maldito). Os dominicanos logo se puseram à
disposição da nova instituição, cabendo-lhes a tarefa de legislar e condenar os
heréticos, entregando-os ao braço secular. O processo movido contra o herético
muitas vezes era feito de tal modo que o acusado ignorava o nome do próprio
acusador, sendo que mulheres, escravos ou crianças podiam servir de testemunhas
da acusação, mas nunca da defesa. Para obter a confissão podia-se utilizar
métodos que não deixavam de ser, de certa forma, torturas, como, por exemplo, a
fadiga, propositalmente provocada, ou o enfraquecimento físico do acusado. Uma
vez apurada a culpa, concedia-se ao réu um prazo para que se apresentasse
espontaneamente ao tribunal. Caso isso não ocorresse, poderia ser denunciado
pelo inquisidor e ser preso. Em caso de confissão da culpa, dava-se ao acusado
a oportunidade de retratar-se, sendo que, neste caso, deveria submeter-se a uma
série de penitências, flagelações, peregrinações e, em casos mais graves, à
prisão. Porém, como já dissemos anteriormente, se o acusado persistisse no seu
pecado, era julgado e entregue ao braço secular que, por sua vez, o conduzia à
fogueira». In Nachman Falbel, Heresias Medievais, 1976, Editora Perspectiva, 2007,
ISBN 978-852-730-180-0.
Cortesia de EPerspectiva/JDACT
JDACT, Nachman Falbel, Literatura, Mistérios, Cátaros,