sábado, 5 de setembro de 2020

Vingança em Paris. Steve Berry. «Malone despertou, afastou o sonho, várias vezes recorrente nos últimos dois anos, da mente e olhou para o relógio sobre o criado-mudo»

Cortesia de wikipedia e jdact

Agosto de 1799

«(…) Ao pé de cada parede lateral, uma rampa plana, de meio metro de largura, estendia o comprimento da galeria. Entre as rampas, uma passagem de 1 metro. Nenhum degrau, apenas uma inclinação íngreme. Ele está lá em cima?, perguntou a Monge. Oui, général. Chegou há uma hora e levei-o até à Câmara do Rei. Ainda agarrava-se à bolsa. Aguarde lá em baixo, do lado de fora. Monge virou-se para sair e então deteve-se. Tem certeza de que quer fazer isso sozinho? Manteve os olhos adiante, na Grande Galeria. Tinha ouvido as histórias egípcias. Supostamente, os illuminati da antiguidade haviam passado pelas místicas galerias dessa pirâmide, indivíduos que nela entraram como homens e emergiram como deuses. Era um lugar de segundos nascimentos, um ventre misterioso, diziam. A sabedoria ali habitava, assim como Deus habitava o coração dos homens. Os savants tentavam imaginar qual teria sido a necessidade fundamental que havia inspirado tal obra hercúlea de engenharia, mas para ele só poderia existir uma única explicação (e era perfeitamente capaz de entender essa obsessão): o desejo da troca das limitações da mortalidade humana pela amplitude da iluminação. Seus cientistas gostavam de admitir a possibilidade de aquele ser o edifício mais perfeito do mundo, a Arca de Noé original, talvez o ponto de origem dos alfabetos, das línguas, dos pesos e das medidas. Não para ele. Este era o portão para o eterno. Somente eu posso fazê-lo, murmurou por fim. Monge saiu.

Napoleão sacudiu areia do uniforme e prosseguiu, subindo a íngreme escadaria. Estimava que tivesse 120 metros de comprimento e já estava sem fôlego quando chegou ao topo. Um degrau alto levava a uma galeria de tecto rebaixado, que fluía em direcção a uma antecâmara de três paredes de granito. Para além, abria-se a Câmara do Rei, de paredes de pedra vermelha polida, com imensos blocos tão próximos uns dos outros que somente um fio de cabelo poderia passar entre eles. A câmara era rectangular e sua largura se igualava a mais ou menos metade do seu comprimento. Estava situada numa concavidade no coração da pirâmide. Monge tinha-lhe dito que era possível que houvesse uma relação entre as medidas da câmara e algumas constantes matemáticas consagradas. Não duvidava dessa observação. Placas de granito planas formavam o tecto, 10 metros acima. A luz se infiltrava suavemente através de duas colunas que perfuravam a pirâmide ao norte e ao sul. O aposento estava vazio, a não ser por um homem e um sarcófago de granito inacabado, em estado bruto, sem tampa. Monge observara como ainda era possível ver as perfurações tubulares e as marcas de serra feitas pelos operários. E estava certo. Havia também relatado que a sua largura era um pouco maior, em menos de 1 centímetro, do que a do corredor ascendente, o que significava que havia sido colocado ali antes da construção do restante da pirâmide. O homem de frente para o fundo do aposento virou-se. O corpo disforme estava envolto numa espécie de túnica solta, e ele tinha um turbante de lã na cabeça e uma peça de calicó cruzada sobre um dos ombros. Era evidente que descendia dos egípcios, mas vestígios de outras culturas revelavam-se na testa plana, nas maçãs do rosto altas e no nariz largo. Napoleão fixou o olhar no rosto de linhas profundas.

Trouxe o oráculo?, indagou o homem. Fez um movimento em direcção à bolsa. Está aqui comigo. Napoleão emergiu da pirâmide. Quase uma hora se havia passado e a escuridão agora engolia a planície de Gizé. Antes de partir, dissera ao egípcio para aguardar do lado de dentro. Retirou mais poeira do seu uniforme e endireitou a bolsa de couro sobre o ombro. Encontrou a escada e lutou para controlar as emoções, mas a hora anterior tinha sido horrível. Monge o esperava no térreo, sozinho, com as mãos agarradas às rédeas do cavalo de Napoleão. A visita foi satisfatória, mon général? Encarou o savant. Escute o que tenho a dizer, Gaspard. Nunca mais mencione esta noite. Compreende? Ninguém pode saber que estive aqui. O amigo parecia surpreso pelo seu tom de voz. Não quis ofender... Ergueu uma das mãos. Nunca mais a mencione. Compreendeu? O matemático assentiu, mas Napoleão percebeu que o olhar de Monge fixava-se para além dele, acima, no alto da escada, no egípcio à espera da sua partida. Atire nele, suspirou para Monge. Percebeu o choque no rosto do amigo e, portanto, pressionou os lábios perto do ouvido do académico. Você adora carregar a sua arma. E quer ser um soldado. Então, este é o momento. Soldados obedecem aos seus comandantes. Não quero que ele deixe este lugar. Se não tem coragem, peça a alguém para fazê-lo. Mas saiba de uma coisa: se esse homem estiver vivo amanhã, nossa gloriosa missão em nome da nobre República sofrerá a trágica perda de um matemático. Viu o medo nos olhos de Monge. Você e eu já fizemos muito juntos, frisou Napoleão. Somos amigos de verdade. Irmãos da assim chamada República. Mas você não vai querer me desobedecer. Nunca. Soltou-o e montou no cavalo. Estou voltando para casa, Gaspard. Para a França. Para o meu destino. Que você possa encontrar o seu também, aqui, neste lugar abandonado por Deus.

Copenhague. Domingo, 23 de Dezembro

A bala entrou rasgando o ombro esquerdo de Cotton Malone. Ele lutou para ignorar a dor e concentrou-se na praça. Pessoas corriam em todas as direcções. Os carros buzinavam. Pneus guinchavam. Os fuzileiros navais de guarda na embaixada americana, perto dali, reagiram ao caos, mas estavam longe demais para ajudar. Havia corpos espalhados por todos os cantos. Quantos? Oito? Dez? Não. Mais. Perto dali, uma mulher e um homem, ambos jovens, jaziam em ângulos contorcidos num trecho de asfalto oleoso; ele, com os olhos estáticos e abertos, iluminados pelo choque; ela, com o rosto no chão, o sangue jorrando. Malone tinha visto dois atiradores e, imediatamente, disparara contra eles, mas passara batido pelo terceiro, que o derrubou rapidamente com um único disparo e agora tentava fugir, usando os curiosos em pânico como escudo. Maldição! O ferimento doía. O medo tomou conta do rosto como uma onda de fogo. Ao esforçar-se para levantar o braço esquerdo, sentiu as pernas bambearem. A Beretta parecia pesar toneladas, não gramas. Seus sentidos estavam abalados pela dor. Sugou golfadas profundas do ar envolto em enxofre e, finalmente, forçou o dedo sobre o gatilho, que apenas rangeu, sem disparar. Estranho. Mais rangidos foram ouvidos na sua tentativa de atirar novamente. E, então, o mundo se dissolveu em escuridão.

Malone despertou, afastou o sonho, várias vezes recorrente nos últimos dois anos, da mente e olhou para o relógio sobre o criado-mudo.

 

0h43min.

Estava deitado na cama, no seu apartamento, a luminária ainda acesa sobre a mesa de cabeceira, como quando ele havia desabado, duas horas antes. Algum barulho o havia acordado. Parte do sonho sobre a Cidade do México, mas ao mesmo tempo não. Ouviu-o de novo. Três chiados em rápida sucessão. Era um edifício do século XVII, completamente remodelado havia poucos meses. Do segundo ao terceiro andar, os novos espelhos de madeira da escada fizeram-se ouvir numa ordem precisa, como teclas de um piano». In Steve Berry, Vingança em Paris, 2011, Livros d’Hoje, 2012, ISBN 978-972-204-916-0.

Cortesia de Ld’Hoje/JDACT

JDACT, Steve Berry, Literatura,