Agosto de 1799
«(…) Ao pé de cada parede
lateral, uma rampa plana, de meio metro de largura, estendia o comprimento da
galeria. Entre as rampas, uma passagem de 1 metro. Nenhum degrau, apenas uma
inclinação íngreme. Ele está lá em cima?, perguntou a Monge. Oui, général.
Chegou há uma hora e levei-o até à Câmara do Rei. Ainda agarrava-se à bolsa. Aguarde
lá em baixo, do lado de fora. Monge virou-se para sair e então deteve-se. Tem
certeza de que quer fazer isso sozinho? Manteve os olhos adiante, na Grande
Galeria. Tinha ouvido as histórias egípcias. Supostamente, os illuminati
da antiguidade haviam passado pelas místicas galerias dessa pirâmide, indivíduos
que nela entraram como homens e emergiram como deuses. Era um lugar de segundos
nascimentos, um ventre misterioso, diziam. A sabedoria ali habitava, assim como
Deus habitava o coração dos homens. Os savants tentavam imaginar qual
teria sido a necessidade fundamental que havia inspirado tal obra hercúlea de
engenharia, mas para ele só poderia existir uma única explicação (e era
perfeitamente capaz de entender essa obsessão): o desejo da troca das limitações
da mortalidade humana pela amplitude da iluminação. Seus cientistas gostavam de
admitir a possibilidade de aquele ser o edifício mais perfeito do mundo, a Arca
de Noé original, talvez o ponto de origem dos alfabetos, das línguas, dos pesos
e das medidas. Não para ele. Este era o portão para o eterno. Somente eu posso
fazê-lo, murmurou por fim. Monge saiu.
Napoleão sacudiu areia do
uniforme e prosseguiu, subindo a íngreme escadaria. Estimava que tivesse 120
metros de comprimento e já estava sem fôlego quando chegou ao topo. Um degrau
alto levava a uma galeria de tecto rebaixado, que fluía em direcção a uma antecâmara
de três paredes de granito. Para além, abria-se a Câmara do Rei, de paredes de
pedra vermelha polida, com imensos blocos tão próximos uns dos outros que
somente um fio de cabelo poderia passar entre eles. A câmara era rectangular e
sua largura se igualava a mais ou menos metade do seu comprimento. Estava
situada numa concavidade no coração da pirâmide. Monge tinha-lhe dito que era
possível que houvesse uma relação entre as medidas da câmara e algumas constantes
matemáticas consagradas. Não duvidava dessa observação. Placas de granito
planas formavam o tecto, 10 metros acima. A luz se infiltrava suavemente através
de duas colunas que perfuravam a pirâmide ao norte e ao sul. O aposento estava
vazio, a não ser por um homem e um sarcófago de granito inacabado, em estado
bruto, sem tampa. Monge observara como ainda era possível ver as perfurações
tubulares e as marcas de serra feitas pelos operários. E estava certo. Havia
também relatado que a sua largura era um pouco maior, em menos de 1 centímetro,
do que a do corredor ascendente, o que significava que havia sido colocado ali
antes da construção do restante da pirâmide. O homem de frente para o fundo do
aposento virou-se. O corpo disforme estava envolto numa espécie de túnica
solta, e ele tinha um turbante de lã na cabeça e uma peça de calicó cruzada
sobre um dos ombros. Era evidente que descendia dos egípcios, mas vestígios de
outras culturas revelavam-se na testa plana, nas maçãs do rosto altas e no
nariz largo. Napoleão fixou o olhar no rosto de linhas profundas.
Trouxe o oráculo?, indagou o
homem. Fez um movimento em direcção à bolsa. Está aqui comigo. Napoleão emergiu
da pirâmide. Quase uma hora se havia passado e a escuridão agora engolia a planície
de Gizé. Antes de partir, dissera ao egípcio para aguardar do lado de dentro. Retirou
mais poeira do seu uniforme e endireitou a bolsa de couro sobre o ombro. Encontrou
a escada e lutou para controlar as emoções, mas a hora anterior tinha sido horrível.
Monge o esperava no térreo, sozinho, com as mãos agarradas às rédeas do cavalo
de Napoleão. A visita foi satisfatória, mon général? Encarou o savant. Escute
o que tenho a dizer, Gaspard. Nunca mais mencione esta noite. Compreende? Ninguém
pode saber que estive aqui. O amigo parecia surpreso pelo seu tom de voz. Não
quis ofender... Ergueu uma das mãos. Nunca mais a mencione. Compreendeu? O
matemático assentiu, mas Napoleão percebeu que o olhar de Monge fixava-se para
além dele, acima, no alto da escada, no egípcio à espera da sua partida. Atire
nele, suspirou para Monge. Percebeu o choque no rosto do amigo e, portanto,
pressionou os lábios perto do ouvido do académico. Você adora carregar a sua
arma. E quer ser um soldado. Então, este é o momento. Soldados obedecem aos
seus comandantes. Não quero que ele deixe este lugar. Se não tem coragem, peça
a alguém para fazê-lo. Mas saiba de uma coisa: se esse homem estiver vivo
amanhã, nossa gloriosa missão em nome da nobre República sofrerá a trágica
perda de um matemático. Viu o medo nos olhos de Monge. Você e eu já fizemos
muito juntos, frisou Napoleão. Somos amigos de verdade. Irmãos da assim chamada
República. Mas você não vai querer me desobedecer. Nunca. Soltou-o e montou no
cavalo. Estou voltando para casa, Gaspard. Para a França. Para o meu destino.
Que você possa encontrar o seu também, aqui, neste lugar abandonado por Deus.
Copenhague. Domingo, 23 de Dezembro
A bala entrou rasgando o ombro
esquerdo de Cotton Malone. Ele lutou para ignorar a dor e concentrou-se na praça.
Pessoas corriam em todas as direcções. Os carros buzinavam. Pneus guinchavam.
Os fuzileiros navais de guarda na embaixada americana, perto dali, reagiram ao
caos, mas estavam longe demais para ajudar. Havia corpos espalhados por todos
os cantos. Quantos? Oito? Dez? Não. Mais. Perto dali, uma mulher e um homem,
ambos jovens, jaziam em ângulos contorcidos num trecho de asfalto oleoso; ele,
com os olhos estáticos e abertos, iluminados pelo choque; ela, com o rosto no
chão, o sangue jorrando. Malone tinha visto dois atiradores e, imediatamente,
disparara contra eles, mas passara batido pelo terceiro, que o derrubou
rapidamente com um único disparo e agora tentava fugir, usando os curiosos em pânico
como escudo. Maldição! O ferimento doía. O medo tomou conta do rosto como uma
onda de fogo. Ao esforçar-se para levantar o braço esquerdo, sentiu as pernas
bambearem. A Beretta parecia pesar toneladas, não gramas. Seus sentidos estavam
abalados pela dor. Sugou golfadas profundas do ar envolto em enxofre e,
finalmente, forçou o dedo sobre o gatilho, que apenas rangeu, sem disparar. Estranho.
Mais rangidos foram ouvidos na sua tentativa de atirar novamente. E, então, o
mundo se dissolveu em escuridão.
Malone despertou, afastou o sonho,
várias vezes recorrente nos últimos dois anos, da mente e olhou para o relógio
sobre o criado-mudo.
0h43min.
Estava deitado na cama, no seu
apartamento, a luminária ainda acesa sobre a mesa de cabeceira, como quando ele
havia desabado, duas horas antes. Algum barulho o havia acordado. Parte do
sonho sobre a Cidade do México, mas ao mesmo tempo não. Ouviu-o de novo. Três
chiados em rápida sucessão. Era um edifício do século XVII, completamente
remodelado havia poucos meses. Do segundo ao terceiro andar, os novos espelhos
de madeira da escada fizeram-se ouvir numa ordem precisa, como teclas de um
piano». In Steve Berry, Vingança em Paris, 2011, Livros d’Hoje, 2012, ISBN
978-972-204-916-0.
Cortesia de Ld’Hoje/JDACT
JDACT, Steve Berry, Literatura,